Tempo de promessas

Ligo o computador e quem aparece em minha tela, agora? Uma das minhas paixões. Minha gatinha Kelly. Um tigresa de olhos dourados e carinha desenhada pelo grande arquiteto felino que lhe deu formas perfeitas. Olho para ela e me deparo com sua tranquila pose de quem sabe que é querida por todos da família e, por isso, talvez esteja em paz com o mundo. Quisera eu ter sensação similar em relação aos que me rodeiam. É que, às vezes, as pessoas nos frustram, porque os homens nem sempre são tão transparentes quanto os animais. Alguns, de cordeiro, só vestem a pele. E como nos enganam! Quem não teve essa experiência no campo afetivo, de trabalho ou mesmo na esfera política?
Hoje, contudo, não é dia para pensarmos nos fatos negativos que pontuaram alguns momentos por que passamos. O ano está se findando de novo, sem o apocalipse aguardado por alguns, e até com grandes expectativas para muitos. Entre estes, podemos localizar aqueles que se distanciam das notícias políticas dizendo, com desdém até, que “política não enche barriga”. Mas pode esvaziá-la, penso eu. Para esses, o mundo é bom e no fim tudo dará certo. São os alienados do mundo verde-amarelo.
Muito longe estou dessa forma de pensar e levar a vida. Tenho muitos sonhos, como todo mundo, e faço também mil promessas para mim mesma para o próximo ano. Mas ciente estou de que boa parte desses sonhos não depende apenas de minha vontade. Eles são mediados, direta ou indiretamente, pelos que nos governam. Pelas leis que dizem o que podemos e não podemos fazer e como devemos nos comportar em sociedade. Leis que ora nos beneficiam e ora nos prejudicam. Leis aprovadas e assinadas muitas vezes à nossa revelia, como fumar, beber, e outras e outras.
E lei deve ser respeitada, diz a Constituição. O que é correto, pois sem obediência às leis surge o caos, não há democracia, não há liberdade de pensamento e expressão. Por isso, é importante estar atento às noticias em discussão pelos integrantes dos três poderes, acompanhar os seus atos para não termos surpresas depois. E colocar a nossa voz e a nossa indignação, ou aprovação, nas redes sociais quando se fizer necessário.
No ano que se finda agora, coisas boas e ruins aconteceram, como sempre, mas muitas foram memoráveis. O julgamento do Mensalão tornou-se assunto de todas as camadas sociais. Porque apesar dos “data vênia” dos ministros, as expressões corrupção ativa, corrupção passiva e formação de quadrilha soaram perfeitamente compreensíveis a toda a população, porque brasileiro sabe bem o que significam essas palavras, pois todas estão ligadas a outras, como roubo e bandidagem. E a maioria vibrou ao constatar que também os grandes ladrões podem ir para a cadeia e não apenas os “ladrões de galinhas”, graças a uma equipe de juristas, capitaneada por homens íntegros como Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Celso de Mello e outros, que priorizaram a responsabilidade ética de seu fazer e não a subserviência aos que os colocaram no mais alto cargo da justiça brasileira, o STF.
Assim, o ano de 2012, como um livro de ficção ou de história, ao chegar à última página deixa o leitor feliz. Ele percebe que não perdeu seu tempo com narrativas cujo desfecho já conhecia, mas com um final surpreendente que julgava impossível, o que permite a ele voltar a sonhar com histórias que, como essa, poderão estar presentes em novas obras a serem folheadas em 2013.
Que os deuses não nos abandonem, agora, e que os roteiros que irão se desenvolver nos noticiários do Ano Novo sejam ainda melhores!

O outro

Perigosamente perto
Sem presença concreta
Sem nome
Sem voz
Arranhando o suor
Que escorre do sonho
De ser só fantasia
Na pele do outro.
Na penumbra da imagem.

Tempo de lembranças

A lista de presentes aumenta dia a dia. E cada um deles numa caixinha especial. A lista da ceia também. E esta já começa a ganhar um formato, entre doces e salgados, de acordo com quem virá. A torta de nozes não pode faltar. É a impressão digital da tia que, presente ou ausente, se programa para não frustrar a expectativa dos participantes que por elas - tia e torta - esperam o ano todo. O tender à Califórnia, preferência do primogênito, é um prato insubstituível. O pavê, a salada especial e, também, o camarão crocante e dourado, ganham aplausos e destaque na distribuição de pratos e guloseimas na arrumação da mesa. São eles imprescindíveis na lista de preparativos para mais um Natal em família.
Dezembro é uma época festiva. A cidade muda o visual com a decoração das lojas e edifícios públicos. Em São Paulo, a Avenida Paulista e o Parque do Ibirapuera são os “points” para visitação noturna quando os projetos natalinos ganham cores e iluminação especiais e criativas, em motivos que resgatam a tradição cristã: o nascimento de Cristo.
Poucos, porém, se lembram disso, porque a vida agitada das grandes cidades não leva mais a população às igrejas para admirar os presépios, reconstituindo o local simples e sagrado onde nasceu Jesus - visita obrigatória das crianças de minha geração -, mas sim aos shoppings centers e às ruas redesenhadas pelos telões, pelas árvores decoradas com laços, sinos e lâmpadas de led. É a beleza estilizada e computadorizada “made in China” que ocupa os espaços abertos de dezembro nos grandes aglomerados urbanos.
Mas, no espaço familiar e reorganizando minha lista natalina, as recordações de natais passados invadem minha mente. As imagens dos que hoje estão ausentes, e a quem queríamos tanto, deixam um lugar vago à mesa, mas não em minha lembrança. São rostos, são frases, são gestos tão vívidos que retornam em momentos de silêncio e interiorização, embora sutilmente resguardados para não quebrar, entre os presentes, o encantamento que o Natal nos devolve a cada ano.
Mas desejando ou não, a cada novo Natal, sinto que a memória busca um outro ritmo, ganha nuances outras e faz transitar por minha mente intocáveis figuras distantes: queridas, etéreas, eternas. Essas sensações parece que nos humanizam. Num mundo de necessidades urgentes, marcadas pelos ponteiros do relógio, elas se tornam um necessário refúgio para reter a evanescência natural de um tempo que lentamente se esvai, se desfaz e com ele as nossas lembranças. Um tempo de perdas menores e maiores que somadas registram a nossa trajetória. E isso me lembra e me aproxima das palavras de Fernando Pessoa, perspicaz observador das sensações humanas, quando poeticamente traduz esse sentir ao dizer:
“Sinto mais longe o passado,/ Sinto a saudade mais perto.”
E a saudade de alguém ou de alguma coisa, que sempre nos acompanha, mas que em dias como o Natal tende a se tornar mais presente e a desdobrar-se em múltiplas imagens. E estas agora roçam a nossa memória e parecem nos dizer: não estamos tão longe assim, estamos também muito perto.
Viver, então, é isso: ora estar aqui; ora estar ali. Vamos, por isso, nos reunir, vamos comemorar, porque ainda estamos juntos e a vida é um traço, apenas um traço frágil, entre o começo e o fim.

O olhar do fotógrafo

Seja nas ruas, nos shows, ou nos eventos os mais diversos, a câmara tornou-se hoje complemento indispensável dos celulares, e está presente tanto nas mãos dos adultos como de crianças para registrar as cenas e os momentos cotidianos. E, diferente do passado, não mais eterniza o instante porque quase sempre, logo após a sua apreensão, essas imagens são rapidamente descartadas e delas nenhum traço mais resiste ao comando de “deletar”.
Não, porém, entre os apaixonados pela arte fotográfica. Estes se esmeram na busca de ângulos insólitos, de pontos urbanos ou cenas exóticas, de espaços ou gestos invisíveis para olhos acostumados à rotina que leva à miopia. Eles veem o que não é percebido por olhos já viciados. E uma prova disso são as feiras e exposições de fotografias. Nesses espaços, renomados fotógrafos revelam, ao público, sua arte em frequente mutação porque em frequente busca pelo novo. É que esses artistas veem no ato de fotografar uma atividade de construção e desconstrução de um universo particular.
O olhar sobre o contexto, a natureza e o homem vem percorrendo um outro percurso desde que a “captura da luz”, e consequentemente da imagem, se processou no interior de uma câmera fotográfica. Pode-se até dizer que, por uma certa ótica, foi quase a vitória de um objeto mecânico sobre a mão adestrada do artista pictórico. Primeiro surgiu a preocupação em plasmar o real, registrá-lo como cópia fiel do existente. Aos poucos, a criatividade daquele que buscava o registro fotográfico como prova do que era visto foi enveredando por outros caminhos, não só pelos recursos aprimorados das objetivas e dos filtros que ofereciam nova e inesperada tonalidade às imagens, mas pela interferência do fotógrafo na busca de um efeito estético. Para trás foi ficando a ideia de foto apenas como prova documental ou registro histórico.
Hoje, as fotografias representam muito mais que a memória do vivido, do visualizado por outros antes de nós, carregada de nostalgia de um passado imovível, e que assim se cristaliza em nossa retina, elas representam também visões pautadas pelo estranhamento originado pelo trabalho do artista que manipula o negativo com recortes, sobreposições e tudo mais que seu espírito inventivo propuser, e expõe depois o resultado de sua técnica à crítica de outros olhares sobre sua arte, capaz de tornar mutante o mundo ali capturado em apenas um clic, mas agora muito especial.
Para aqueles que apreciam essa arte, o site de Célia Mello www.fotografiacontemporanea.com.br é um bom endereço eletrônico para ser visitado. Ali, há fotos e textos sobre fotografia que nos dão um panorama desse exercício do olhar que vem se tornando cada vez mais inovador e cada vez mais instigante.

Estar só

Estar só é utopia.
É mergulhar em magias,
de vésperas.
É ouvir o inaudível
ainda,
E tocar o intocável
de leve,
No aconchego da memória
Do que ficou nas distâncias.

Sussurros tardios

No entreabrir do pretérito
A tela de sempre desvela
Resquícios de tênues traços
Sombras de dias nublados.

No sussurro da voz tardia
Dos roteiros enclausurados
E (pre)textos emudecidos
Não há mais ouvidos atentos
Só os frios rumores do inverno.

Ensaio


Ensaio dizer
dubiamente
a palavra precisa
que se insinua
 como em todo ensaio,
um gênero incerto.

Ensaio dizer
o que sei
ou penso saber
mas tropeço no ensaio
e saio de cena,
sem o saber.

"Um dia é da caça; outro do caçador"

Estamos em época de julgamento do Mensalão. Aquele que o “Santo” Lula disse nunca ter existido. Pura ficção da mídia e da oposição, segundo ele.
Não foi esta a visão dos nossos Ministros do STJ (com duas exceções, é claro) que, após minucioso e cirúrgico exame dos fatos, concluíram pela condenação de quase todos os réus, envolvidos em um esquema maquiavélico de corrupção, nunca antes visto neste país, parafraseando o ex-chefe da nação ou da facção, não se sabe bem.
Portanto a época de arrogância, de ironias e ameaças por parte dessa classe política que nos governa parece estar passando e deixando, atrás de si, um rastro de nódoas e máculas que os livros de História, no futuro, poderão registrar com mais clareza, certamente.
Certo também o provérbio tão conhecido “Um dia da caça; outro do caçador.” Pois parecia tão distante a possibilidade de se virar o jogo e, agora, essa oportunidade chega como uma compensação àqueles que acompanharam, de longa data, todos os males praticados pelos políticos sem caráter, e já se sentiam impotentes diante da força demonstrada pelos assaltantes do erário público, em paralelo à descrença que foi se criando em relação à Justiça em nosso país.
É que somos governados, há mais de uma década, por quadrilheiros arrogantes que levavam o nosso dinheiro, resultante do trabalho árduo (diuturno, às vezes) para suas contas no exterior e para uma vida de luxo e mesmo de luxúria, conforme fatos com imagens veiculados pela mídia, cujo papel é esse mesmo: informar corretamente a população, embora a propaganda política e as “Bolsas-tudo” sempre ofuscassem a visão dos menos favorecidos e, por isto, estes nada enxergaram de errado no governo que elegeram. Mas se eles, os políticos, antes faziam a festa, hoje somos nós, a população, quem comemora a decisão do Supremo Tribunal Federal.
Mas foram anos de desalento  para os mais esclarecidos, ou não fanáticos, e que a tudo assistiam com olhos bem abertos, mas com as mãos amarradas. Estes sabiam e sabem que a História se repete e basta olhar para trás para visualizar o poder que se enraíza, se fortalece e mata a liberdade e os sonhos de toda uma geração. Basta olhar para Cuba e Venezuela, hoje, mas não só para elas.
Por isso, há poucos dias fiz até  um poema em homenagem aos nossos “bons” vizinhos, que serve também para os atuais governantes daqui, quando me deparei com um jovem gentil e bem-humorado usando uma camiseta vermelha, tendo estampada no centro a imagem de Che Guevara com a frase “Soy loco por ti América”. Tive pena dele: um jovem com um futuro promissor a se encantar com terroristas da pior espécie porque, se vivo fosse, Che Guevara não seria diferente do “companheiro” Fidel,  que vem sufocando toda uma população por uma ideologia retrógrada que só a ele beneficia. Que Deus nos livre dos salvadores da pátria e de ideologias perigosas.
Se quiser ver meu poema, ele está aqui em meu blog.

Soy loco...

Soy loco

Soy loco por ti América:
por teu solo, teu sangue, tuas riquezas.
Do teu povo quero o apoio
a cegueira e a submissão.
O meu nome nas camisetas,
minha imagem em profusão
Nas mentes
Nas ruas
Nas falas
de todo e qualquer cidadão.
Meu nome é Che, é Castro, é Cuba
 &... &...&...
Si, soy loco por ti mi América
E de ti jamais abro mão.

Poema da mudez

Quis dizer algo
Não consegui
A palavra certa não veio
Procurei-a e só achei seu espectro
Parecida mas não aquela
Similar em seu som
Diferente em seu sentido
E a você não podia ser outra
Porque você era aquele
Que em minha mente lia
Não só as frases
Mas também as entrelinhas

Poema do Azul

Azul celeste
Azul- turquesa
Lápis-lazúli
Entre o céu e o solo
Os minerais e a pele
Os tons se mesclam
E a cor se transmuta
Em pura poesia

O clima de São Paulo

  Por viver em um país tropical nós nos acostumamos às altas temperaturas, às frutas em abundância e de uma doçura sem igual, às conversas preguiçosas que não têm hora para acabar, e a vida ao ar livre. Na massa cremosa dos sorvetes e nos geladinhos e multicoloridos sucos, encontramos estímulo para permanecer à beira do mar ou das piscinas, desafiando o sol por horas sem fim.
Nas tardes quentes os barzinhos lotam aqui e ali, os copos de cerveja se esvaziam e se completam em segundos em meio ao riso fácil e as histórias sem enredo prévio. Tudo é descontração. Tudo é alegria e aproximação. Nem se percebe a chegada da noite em seu ciclo eterno de substituição da luz do crepúsculo pelo negro véu que esconde também as estrelas.   E nessa alegria ruidosa, sem hora para acabar, os jovens em especial confirmam o estilo com que nos diferenciam dos demais: um povo descontraído e feliz
Mas São Paulo é uma cidade pouco decifrável pelos meteorologistas. É uma metrópole bem feminina, plena de manhas e de mistérios. Lá pelas tantas do dia ou da noite, quando menos se espera, ela muda de humor e as temperaturas se invertem: a chuva e o vento invadem os espaços, apagando o claro, quente e tranquilo cenário, enquanto as águas inundam as ruas. O paulistano, contudo, acostumado às inconstâncias climáticas não altera sua programação ou sua disposição para o encontro com os amigos e com a geladinha no copo, pois é isso que ajuda o viver e ameniza as agruras do dia a dia.
No campo da política, porém, essa postura alienada e descontraída não é uma boa companhia para os jovens que, diante de tanta notícia ruim e de tanta hipocrisia daqueles que nos governam, já se habituaram à  ideia de que tanto faz votar neste como naquele porque nenhum deles é confiável. E assim não procuram conhecer a biografia dos candidatos que é o que os diferencia. E para governar uma cidade como São Paulo, uma das maiores do planeta, necessário se faz  competência e ” ficha limpa”, sendo que esta foi uma vitória da população que colheu milhares e milhares (ou milhões, não sei bem) de assinaturas, inclusive a minha, para que a lei hoje exista e se saiba quem é quem.
Quando me perguntam quem é meu candidato, não me nego a responder que votarei em José Serra porque só voto em quem confio, já provou que é competente, porque foi o melhor Ministro da Saúde que já tivemos, e que não cometeu ilícitos e, portanto, é um candidato ficha limpa, o que raro hoje é. A sua ficha é tão limpa que em eleição passada, para macular sua imagem e reputação, seus opositores tentaram emplacar um dossiê visando a incriminá-lo, mas este foi descoberto a tempo, o que prova que políticos dessa laia, sem escrúpulos e sem ética, não servem para governar nossa cidade, são nefastos para a nação.
Por isso, em 7 de outubro, chova ou faça sol, irei sim a caminho das urnas para defender um dos meus mais importantes direitos que é votar, ou seja, escolher e apontar o melhor candidato, independente se ele sairá vitorioso ou não, pois eleição não é turfe em que se aposta no provável vencedor; eleição é algo sério em que se busca eleger o melhor. E, para mim, o melhor é José Serra.  Depois, se vencer, os barzinhos aí estão: é só comemorar.

Nunca antes...

Nunca antes neste país
Se viu tanta confusão
Um não sabia de nada
O outro também não.

Roubo aqui
 roubo ali
 caixa um
 caixa dois
E o dinheiro da nação?
Ninguém sabe
 ninguém viu,
mas não houve roubo não.

É ilusão!
É fantasia!
É criação!
de uma mídia elitizada
que precisa de censura
por andar na contramão
discordando da lisura
do ex-chefe da nação.

Que em seus delírios pretéritos
De um ego em desconstrução
Insiste ainda na farsa
Do repetido refrão:
Nunca houve Mensalão!
Nunca houve Mensalão!


As moscas espertas

Será que o ex-presidente Lula, tão chegado a metáforas (futebolísticas e domésticas), gostou da afirmação da Ministra Carmem Lúcia ao explicitar, na exposição de seu voto, que “São raras as moscas que caem na teia de Aracne”? Ou será que ele, Lula, a mosca maior, que sempre circulou no entorno das teias, mas nunca pousou à luz do dia em nenhuma delas, se sentiu desnudo e no espelho? (Neiva Pitta Kadota npkadota@terra.com.br – São Paulo)
Publicado no “Fórum dos Leitores” do Portal Estadão.com.br, de 29/08/12.

A nostalgia dos domingos

Um amigo me enviou um e-mail neste final de tarde e se dizia melancólico. Como? pensei. Apesar deste sol que a tudo enche de luz? E dos tons alaranjados e “calientes” que parecem aquecer as nuvens e também a nós? Mas somos sensíveis. Nem sempre estamos em compasso com a beleza do entorno. Não reagir positivamente diante de um dia assim é bem mais comum do que parece. Muitos autores já manifestaram sua tristeza no decorrer desse dia da semana tão esperado. Clarice Lispector, em Água viva, afirma que “Domingo é dia de ecos – quentes, secos, e em toda parte zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pássaros e o longínquo das marteladas compassadas – de onde vêm os ecos do domingo?”
 E fiquei refletindo sobre essa melancolia que nos atinge em determinados momentos sem sequer sabermos bem por que ela ecoa dentro de nós. Mas as lembranças, essas “marteladas compassadas”, esses “ecos longínquos”, a que se refere Clarice, às vezes se apropriam de nossa mente resgatando pessoas, lugares e passagens que deixaram rastros indeléveis e, então, é impossível não ceder a essa sensação de saudade, solidão e tristeza. Mas o ato de viver nos obriga à alternância de estados de euforia e instantes nostálgicos. São os ecos do vivido que continuam em nós e de repente despontam em nosso cinematógrafo interior. São eles o acervo da nossa memória. E sem eles nada somos.
Bem diferente foi meu domingo. Atendi ao chamado do sol e da luminosidade do dia para circular pelas ruas de São Paulo, sem pressa, sem querer chegar a lugar nenhum, apenas saboreando as delícias que as cenas urbanas oferecem nos finais de semana: trânsito tranquilo nas principais vias da cidade, motoristas gentis cedendo passagem aos pedestres; pessoas de todas as faixas etárias em roupas leves e semblantes descontraídos; tênis, sandálias e bermudas compondo um gracioso festival de cores. A cidade muda porque mudamos nós e nesse sistema oscilante um é a complementação do outro.
Na obra As Cidades invisíveis, Italo Calvino, autor italiano que sabe selecionar e combinar as palavras como poucos para contar suas histórias, diz de Raíssa, uma das cidades por ele descritas, que por ela “corre um fio invisível que, por um instante, liga um ser vivo ao outro e se desfaz, depois volta a se estender entre pontos em movimento desenhando rapidamente novas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem mesmo sabe que existe.”
Não é apenas Raíssa que se transforma continuamente. Todas as cidades contam com composições que se alternam e às vezes se sobrepõem diante da mobilidade de seus personagens: ora aqui, ora ali; ora alegres, ora tristes. Também São Paulo é uma cidade mutante. Ela nos revela múltiplas faces, dependendo do dia e do horário, dependendo do bairro e também do nosso humor. À noite as ruas são belas, mas podem também conter armadilhas como assaltos, agressões, sequestros e outros inconvenientes; nela nos deparamos com incontáveis opções de lazer, estudo e trabalho, mas podemos não estar preparados para tanto; cinemas, teatros, bares e restaurantes cintilam em alguns bairros, contudo o nosso poder aquisitivo pode não estar à altura de alguns desses privilégios.
Assim, esta que é uma das maiores cidades do mundo, tem em sua essência a dualidade também existente na alma humana, essa característica de compreender o bem e o mal, de ser uma cidade similar a uma Matrioska (a boneca russa que contém dentro de si uma outra e, dentro desta, outra ainda, e mais outra e...), mas com uma diferença: não são exatamente iguais em sua aparência como as Matrioskas. Por isso, a atração que ela exerce sobre nós: por ser uma e ser várias, um caleidoscópio, uma célula viva para uns, uma utopia para outros, mas é uma cidade prenhe de devaneios e fantasias. Seja pela efervescente agitação nos dias comuns, seja pelo aspecto letárgico e sereno nos fins de semana. A metrópole assim, como um instantâneo fotográfico, nos oferece o cenário, mas quem nele atua e o altera somos nós com os nossos sonhos ou a nossa nostalgia.
Por isso talvez, neste domingo, embora meu amigo e eu tenhamos muita afinidade, ele estava melancólico sob o sol da nossa cidade, enquanto que eu mergulhada em suas teias urbanas pude nelas sentir, ainda que de forma efêmera, a vibração e a ressonância harmônica que o contexto às vezes é capaz de em nós reproduzir.        

Tempo, esse inimigo de sempre

“Quando setembro vier” é nome de um filme. Um filme para ser visto apenas como entretenimento e para quando se está cansado das mesmices que a televisão ou o cinema comercial apresentam com frequência: violência, tráfico, heróis embrutecidos e efeitos que não mais são especiais porque viraram rotina. Eu o revi nesta semana por puro acaso e o efeito foi relaxante.
É uma película já meio, ou muito antiga, dependendo da idade de cada um. É que meio imperceptível o tempo vai passando, de leve, sem quase ruído, e quando por ele damos conta, o espelho já nos revela, como em uma tela de projeção, uma “outra” pessoa nos olhando. E, perplexos, nos descobrimos já muito diferentes do que fomos.
Hoje, por exemplo, diante de um espelho me lembro de um conhecido e belo poema de Cecília Meireles que termina com este verso “_ Em que espelho ficou a minha face?”. Sim, onde se esconde, pergunto eu, aquela imagem que era o meu duplo e que agora foi substituída por uma figura estranha que mal reconheço porque o meu olhar se apoia certamente numa imagem do passado, aquela que foi congelada pelas fotos mais antigas e que me agradam, e não esta que desfigura minha face, transformando-a em uma cópia mal revelada do que fui, e que não pode ser a imagem do que sou. Mas ela é.
Isso nos faz lembrar e entender o drama existencial e estético de Oscar Wilde em sua mais famosa obra O retrato de Dorian Gray. Nesse romance, o autor registra o medo ancestral dos homens de terem de enfrentar as mudanças corpóreas e estéticas que a imagem do espelho nos revela. E hoje , mais do que nunca, se faz qualquer pacto com o diabo, como o personagem de Wilde para permanecer eternamente jovem, enquanto seu retrato envelhecia na moldura; ou com o cirurgião plástico para se poder fugir dessa sina.
Também nesse filme os atores ainda eram jovens e belíssimos. Um par irresistível de felinos: Rock Hudson e Sophia Loren. Ele morreu na década de 80, soropositivo, e devido a sua doença sofreu uma grande transformação visual. Ela, uma bela atriz italiana que primeiro escondia as rugas atrás de seus óculos escuros e, depois, passou a fugir dos fotógrafos, o que é comum entre os famosos quando as marcas do tempo se mostram irredutíveis a cremes e bisturis.
E, dentre os jovens, quem hoje conhece Rock Hudson e Gina Lolobrigida? Só mesmo os com bem mais de 40 ou os apaixonados por cinema. Estes sim, independentemente da idade, sabem tudo a respeito da denominada “sétima arte”: do diretor ao roteirista, à trilha sonora e aos atores. Discutem a sua performance, o enquadramento, os planos, enfim todo o trabalho de câmera e tudo mais que um futuro cineasta precisa conhecer ou o amante das “telonas” busca curioso descobrir.
Não se pode esquecer que é uma arte engenhosa o cinema e, por isso, para poucos. Mas essa arte, quando bem conduzida, nos coloca diante dos problemas e das angústias dos homens, levando-nos a conhecer melhor a nossa essência pela imediata identificação com o outro, o que pode produzir em nós um efeito de relaxamento e de aceitação até das mudanças que nos esperam num futuro próximo, ou mais distante, porque queiramos ou não “assim caminha a humanidade”. Aliás, este é também outro título de filme antigo e também com Rock Hudson, um galã cujo rosto perfeito embelezou as telas e enfeitiçou todos os seus fãs, mas não resistiu à passagem perversa do tempo e às alterações que esse trajeto provoca.







Retrato líquido


Como os oceanos,
pura água em movimento.
Ora calmo.
Ora violento.
Trêmula lâmina
de superfície líquida,
transparente.
`A sua cor,
Já nos acostumamos.
O difícil é divisar
As dúbias nuances  
De suas profundezas.

Educação: negociações empacadas

Greves e mais greves de professores da rede federal estão desestruturando o calendário escolar e colocando em crise o já tão problemático ensino em nosso país. O primeiro semestre terminou sem aulas e o segundo iniciou sem férias, porque sem acordo com o MEC, que deveria ter agilizado o processo, mas não o fez, todos (alunos e professores) estão em compasso de espera. Ninguém estuda. Ninguém viaja. Todos esperam. E o que se espera é uma solução ágil, mas neste país tudo parece emPACado, embora o governo alardeie que o seu objetivo é o Programa de Aceleração.
Aceleração do quê? Não se sabe, pois a única aceleração que se percebe é a da corrupção e mais nada. É obra parada aqui, é obra parada ali e todas pelas mesmas causas: propinas, desvios de verbas, superfaturamento, ou seja, falcatruas. E ninguém que está sob o manto do governo é punido. Lei? Ora, a lei! Essa é para os inimigos e não para os amigos dos que estão no poder.
Mas voltemos aos professores que têm “apenas” a responsabilidade de preparar intelectualmente as crianças e os jovens para conduzir o futuro do país. Apenas isso, coisa simples, secundária talvez, pela ótica de nossos governantes. Ou, então, teriam se apressado em ouvir atentamente os docentes, em apresentar uma proposta adequada às suas reivindicações, merecidas por sinal, o que evitaria todo esse desgaste que em nada beneficia aos alunos que terão um ano letivo desperdiçado pelo descaso e incompetência política de um ministro cujos olhos, no momento, se voltam apenas para o desempenho dos candidatos de seu partido nas próximas eleições. 
Mas e os alunos? Não há preocupação em mantê-los nas salas de aula para ampliar o seu campo de saber? Ainda mais agora que os índices educacionais se mostraram tão aquém das necessidades básicas do estudante brasileiro ao revelar que muitos chegam aos cursos superiores semialfabetizados? Não, isso não parece tirar o sono de nossas autoridades.
E, então, Ministro Mercadante, isto não nos envergonha? Isto não é grave? Não é um entrave para o país que deseja ser grande potência amanhã? É uma das grandes tragédias, me parece, talvez a maior de nossa cultura. E esse quadro só poderá ser revertido se houver conscientização de todos, vontade política, professores motivados e bem pagos, estrutura condizente com as necessidades de cada escola, de cada curso, ou seja, é urgente que haja um movimento sinérgico na busca de transpor tão grandes barreiras. E o principal neste momento é ouvir os mestres e doutores no assunto, ou seja, os professores de várias categorias, pois são eles que vivenciam de perto os problemas de cada aluno.
Ou será que certos estão os que afirmam que o desejo dos governantes é que a população se mantenha na ignorância, não adquirindo, assim, a competência para julgar os seus atos? Porque não se resolvem os problemas da Educação somente construindo prédios para mostrar na mídia o empenho do governo; é preciso mais, muito mais. E usando uma expressão da informática: não basta investir apenas em Hardware, é preciso pensar no Software e aí, tudo indica, está a chave para se desvendar o mistério do nosso insucesso educacional.     
 

As marcas de uma cultura

Abri o jornal. Um mar de palavras inundou os meus olhos. Tinha consciência de que ali estavam todas as informações de que necessitava: programação teatral, de cinema, de espetáculos de dança, de esportes, de política... O alfabeto era cirílico e, por isso, todas as letras pareciam tremer ao toque de minhas mãos e, num movimento brusco, fechei-o imediatamente. Levantei-me do sofá e tensa caminhei até a porta. Dia nublado. Frio. De três a quatro graus negativos era a previsão. Era quase outono. O cachecol aquecia-me o pescoço e o peito. Com o casaco grosso e pesado, resistiria, sim, à baixa temperatura. Esperara tanto por isso e era minha primeira manhã em Moscou.
Acordara cedo demais. Os outros ainda dormiam. Fiquei olhando o vaivém das pessoas do lado de fora pela porta de vidro. Limitavam-se elas a manchas escuras semoventes que se cruzavam ou seguiam paralelas e logo desapareciam de meu campo de visão. Internamente, as vozes se mesclavam, mas meus ouvidos quase não distinguiam os sons. Resolvi então tomar meu café. Quanta variedade! Coloquei sem pressa os pãezinhos, geleias e biscoitos mais atraentes em meu prato. Enchi as xícaras com café e leite. O copo de suco. Laranja ou pêssego? Laranja. As frutas. Acomodei-me em minha confortável cadeira e comecei pelo suco.
Olhava em torno os prédios antigos e austeros, e dali visualizava os símbolos que por tanto tempo alimentaram os meus sonhos no passado. As formas ainda mexiam com as minhas lembranças, mas não eram as mesmas, e o vermelho já não tinha o significado de antes. Perdera a sua força, a sua importância, o seu valor. Ouvi um “Bom dia!”. Os outros haviam acordado. Viajar em grupo tem seus pontos positivos e outros nem tanto.
Dentro do ônibus, o guia ia descrevendo a cidade, os monumentos, as igrejas. A arte estava por toda parte. No exterior das igrejas, pelas cúpulas coloridas; no seu interior, pelos ícones sagrados. Nos museus, pela quantidade e qualidade das obras raras. Nas estações de trem e de metrô, pelas esculturas e arte pictórica. Nas ruas, pela amplidão de suas praças e avenidas. Era um mundo singular. Era a Rússia dos antigos czares, da ideologia marxista que motivou Lenin à Revolução de Outubro, em 1917. Mas foi também o fim dessa “fábrica de sonhos de igualdade”, pelo autoritarismo sanguinário de Stalin.
Mas nessa história, embora tenha passado tantos anos após a Perestroika, o guia não tocava. É que o medo ainda se mostrava muito presente nessa cultura que viveu mais de setenta anos sob o duro regime soviético, sob o símbolo da foice e do martelo. Se a ele perguntássemos algo sobre o regime, de imediato “perdia” a compreensão da língua estrangeira e continuava o seu discurso com se um ventríloquo fosse: “Aqui, na Praça Vermelha, do lado direito temos o Kremlin...”
É, não é fácil esquecer o passado, não, porque “ninguém se livra de seus fantasmas”.

Revisões


Gosto de rupturas
Gosto de releituras
Ao trivial da mesmice
a surpresa do estranhamento
E um pássaro inclina a cabeça.

Diálogos eternos

Uma voz
Um silêncio
Um grito no azul
Na tarde de outono
O som se esvai
Em sombras quase se dilui
No eco, porém, tudo se recompõe

Neblina


Neblina
No céu dos deuses
sem fé
Nas manhãs dos homens
sem tédio
Nas noites brancas
de espera
das mulheres nuas
de sonhos

O idiota

Chegou de mansinho. À minha frente, sentou-se e assim ficou. Calada. Os olhos se voltavam para a rosácea de pedras delicadas e brilhantes de seu sapato tipo rasteirinha, juvenil. Com as duas mãos segurava a bolsa pink e assim permaneceu. Três alunos à minha volta reclamavam das notas. Como assim? Tudo que escrevi e só essa nota? A explicação era longa, repetitiva, mas seu efeito parecia ter sofrido a mesma maldição de Cassandra, a sacerdotisa para cujas profecias ninguém dava ouvidos. Eu entendi sim, mas essa nota? Você quer dizer que estou reprovado? Não, essa não! Como professor, eu retomava a explicação. Os alunos repetiam o gesto de indignação. E os minutos passavam.
A menina da bolsa pink parecia ainda concentrada na rosácea de pedrinhas de seu sapato.
O celular de um deles tocou. É, cara, aquele idiota me reprovou. Senti uma revolta pelo qualificativo e instintivamente quis revidar, mas a frase seguinte alterou minha reação. Eu sempre odiei Estatística e ele sabe disso. Minha matéria não era Estatística. Então, não era comigo. Eu não era o idiota. Mas, então, ele também não sabia Estatística?! Não entendia de palavras e não entendia de números. E o professor era o idiota?
Em Dostoiévski, o idiota, personagem que também dá título à sua obra, era assim caracterizado porque não agredia ninguém. Perdoava as falhas humanas. Ele perdoou até o assassino de sua amada, beijando-o diante do corpo daquela a quem amara em silêncio e ali jazia morta por ele. O que é ser idiota? Rapidamente pensei que deveria pesquisar sobre isso. Do que eu sabia, há o esperto e o idiota e ambos sempre se apresentaram negativamente à minha compreensão. Não queria ser idiota, nem esperto. A esperteza está associada à falta de ética; a idiotice à falta de compreensão do mundo, das coisas que nele existem. E eu sempre buscara desenvolver minha capacidade cognitiva no limite que os deuses ou os genes me permitiram. E continuava nesse processo. Defendera teses. Obtivera títulos. E minha classificação agora, por esses garotos imberbes ainda, não deveria ser diferente daquela com que denominaram o conceituado professor de Estatística. Um idiota.
Minha revolta silente pareceu atingir a aluna de sapatinhos de vidro. Não, de vidro não. De pedrinhas revestindo a rosácea que dava graça àquela peça que compunha com delicadeza o figurino feminino. Seus olhos se ergueram e fitaram os meus. Na retina, eu via duas incógnitas. Tentei adivinhá-las. Não consegui.
Os garotos agora conferiam pelo celular as novas notas e as médias obtidas em outras disciplinas. Palavrões surgiram. Tô ferrado! Fiquei em Informática também. Aquele imbecil me reprovou? Eu só precisava de três e ele me deu um!!! Cretino! Pra mim ele deu dois, mas eu precisava de cinco. Vá se ferrar, cara! Vá se f... Nem a minha presença nem a da garota constrangiam os revoltados meninos em seus contínuos impropérios.
Senti, nesse instante, que ser chamado por eles de idiota poderia até ser um elogio; similar, talvez, a de um jogador de futebol quando recebe a alcunha de animal. Ele é um animal! Ele é fera! Ele é bom demais! Mas, não. Não era assim que nós, professores, éramos vistos por aquele grupo sem nenhum apetite pelo saber. Os qualificativos Idiota, imbecil, significavam idiota e imbecil mesmo, e muito longe estavam de uma forma carinhosa de tratamento.
Sem me dar importância, e já de costas, como se a minha presença fosse apenas virtual, foram saindo e comparando as notas, em meio a exclamações realmente ofensivas. Fiquei com as provas sobre a mesa e, sem ter mais o que fazer com elas, fui colocando-as cada uma em seu pacote. Senti até um alívio quando constatei que na sala só havia a garota de bolsa pink e sapatinhos com a graciosa rosácea, que já se levantava e a mim se dirigia com um sorriso meio tímido.
Vi sua carteirinha e seu nome. Que bom, agora já sabia seu nome, já começava a me lembrar. Eram tantos os alunos... E aí, Luciene? Tudo bem? Desculpe a fala grosseira de seus colegas, é que... Não se preocupe, não, professor, disse ela com uma voz tranquila. Relax. Relax. O meu problema é outro. Eu tenho faltado muito às suas aulas e estou com excesso de faltas. Por isso, talvez, nem se lembre de mim... E por que tem faltado tanto? O que ocorreu? Problemas de saúde, com a família?  Não, não, professor, é que saio muito à noite. Sabe a balada, os amigos... a gente bebe muito, e não consigo acordar de manhã. Dá pra dar um jeitinho aí e retirar minhas faltas? E, cuidadosa com as palavras, e em tom mais baixo. É simples, já me informei, é só alterar no Mapa de Médias e justificar que errou. Assim, eu faço umas DPs e vou levando o curso.
Olhei para ela atônito. Seus olhos fixos nos meus, profundos, tão profundos que neles cabia toda a sua safadeza. Fiquei perturbado. A surpresa me abalara. Não via mais a bolsa e os sapatinhos, apenas seu rosto, seus olhos e sua expectativa pelo sim. Tranquila esperava pela resposta. Para mim, um veredito. Mas não titubeei, apesar de saber que ela esperava uma resposta afirmativa. Sinto muito, Luciene, você está reprovada por faltas e eu nada farei para alterar essa situação. Seria desrespeitoso para com seus colegas que acordaram cedo, sempre assistiram às aulas, se esforçaram... Quem? Aqueles três que saíram daqui? Eles são meus colegas, frequentamos os mesmos barzinhos e por isso eles vinham às aulas de óculos escuros para poder dormir sem que você percebesse, e levantando-se altiva confirmou: E não percebeu nunca. Você é um idiota, mesmo! E saiu batendo a porta.    


A dependência nefasta


A mente humana é plena de labirintos e armadilhas. Acreditemos ou não, estamos cotidianamente armazenando informações. Tudo que vemos, tudo que ouvimos e tudo que sentimos, é registrado em nosso cérebro como se gavetas ele tivesse e nelas ficassem guardados os nossos “segredos” intelectuais, profissionais e afetivos.
Contudo, o mundo mudou. E mudou sensivelmente, a partir dos mecanismos tecnológicos desenvolvidos no século XX por cérebros privilegiados. Por essa razão, aos olhos dos jovens, parece até desnecessário e obsoleto esse registro pessoal que exige tanto esforço e tanto estudo. E pela ótica de muitos, jovens e até não jovens, passamos a viver em um mundo tecnológico e não mais nos preocupamos em memorizar tudo que os nossos sentidos captaram para desenvolvermos as nossas competências e, consequentemente, construirmos a nossa história de vida, porque os equipamentos retêm, segundo eles, todas as informações necessárias. É só acessá-las. Basta um clic.
Quem convive, porém, com a juventude em sala de aula, muitas vezes se depara com essa visão distorcida, equivocada mesmo, que os alunos manifestam diante de uma orientação para um esforço maior de concentração e retenção dos ensinamentos ministrados. – É só procurar no Google, depois, professora, dizem eles.
Essa postura revela, porém, duas coisas: uma, que eles estão certos porque os sites de busca nos levam à informação de que precisamos, no instante mesmo do acesso, e sem esforço mental nenhum; a outra é que eles estão errados porque, embora hoje o saber já se encontre fora do cérebro humano, concentrado em máquinas denominadas inteligentes e, por isso, capazes de reproduzir os saberes, estas máquinas se limitam a obedecer a comandos humanos e, se eles estiverem sem elas... Aí a situação fica complicada. Há alunos de cursos de Engenharia que sem as HPs, aquelas conhecidas e competentes calculadoras, já tropeçam nas quatro operações básicas. O que não me parece um avanço para o ser humano, e sim um retrocesso.
O difícil é fazer com que muitos dos apaixonados pelos “googles”, da internet, compreendam que o homem não pode ficar apenas à mercê da tecnologia, por mais eficiente e portátil que sejam os equipamentos. A ajuda tecnológica deverá, sim, ser um complemento (indispensável hoje), para auxiliá-lo em suas pesquisas e resolver problemas com a rapidez que a modernidade exige, mas cabe a ele abrir as gavetas do cérebro, e estimular cada vez mais os seus neurônios, para apreender não só o conhecimento e a complexidade do mundo, mas desenvolver também a sua capacidade cognitiva, fazendo assim jus a sua classificação de homo sapiens.
Ao agir dessa forma, ele se tornará, então, um ser apto a buscar soluções criativas para um planeta cada vez mais comprometido pela incompetência, pelo descaso e pela alienação dos homens que preferem e se contentam em viver sem pensar.

Enigmas

Deslimites
Devires
Desejos
Um corpo em transe
(em trânsito)
Cristal líquido
reverberando ágil
pelas veias
pelas vias
Enigmáticos fluxos
de luminiscências

O esforço e o sucesso


O que não falta em nosso país são comemorações. E a Avenida Paulista, em São Paulo, é a escolhida para esses eventos. Já escrevi sobre isso em um número antigo da Revista Facom.   É uma faceta conhecida, aqui e lá fora, de que somos um povo feliz e com características positivas. Basta observarmos a forma como recebemos os “diferentes” e aí se incluem as raças, os estrangeiros em especial. Com eles nos relacionamos de forma harmônica, o que nos coloca acima dos europeus, principalmente os franceses, que praticam explicitamente a xenofobia e perseguem como se praga fossem os que vêm de fora. Aqui, o estrangeiro é sempre bem-vindo. Um exemplo são os japoneses que, como outros que os antecederam, se sentiram em casa. E aqui criaram raízes.

Em nosso espaço, os japoneses se instalaram há mais de cem anos. Chegaram em 1908 e logo se adaptaram (com esforço, é óbvio) às diferenças culturais e linguísticas. E o centenário dessa imigração foi comemorado com muita festa em nossa cidade, em especial no bairro da Liberdade onde reside a maior parcela desses orientais. Eles mesclaram-se efetiva e afetivamente com os brasileiros, e muito contribuíram para o nosso desenvolvimento, não só na agricultura, mas também em outras áreas, como as ciências exatas, biológicas, políticas e, principalmente, nas artes. Os nomes de Tomie Ohtake e Manabu Mabe, para citar alguns, que, com a singularidade do traço abstrato e da cor vibrante, enriquecem o tão exigente cenário artístico, e assim reforçam a nossa tese. Podemos dizer, até sem trocadilho, que os japoneses deram uma outra cara para o Brasil.

Naquele ano, 2008, também foram lembrados (embora sem muito alarde, sem muitas comemorações) os cem anos da morte de Machado de Assis. Uma das figuras mais envolventes de nossa literatura. Quem não conhece sua obra não sabe o que está perdendo. Machado, com sua ironia sutil e seu olhar de felino esperto, dissecou a alma humana, mesmo antes de Freud expor suas teorias, hoje tão conhecidas e exploradas não só pelos especialistas do assunto, mas pelos outros, os leigos que, mesmo nunca tendo percorrido nenhuma página de suas publicações, mas diante de situações paradoxais, e para revelar talvez uma falsa cultura, repetem à exaustão “Freud explica”.

Mas Machado de Assis continua nos ensinando a ler o mundo e as mazelas humanas, seja em seus romances, seja em seus contos. Quanto mais releio Dom Casmurro mais me certifico de que Capitu é, sem dúvida, a personagem feminina mais bem delineada e melhor engendrada para aquela trama em nossa literatura, e de que o conto “O espelho” é o que com maior nitidez revela o nosso desejo, consciente ou inconsciente, de produzir uma outra imagem de nós para o outro e de vivermos em função dessa imagem que fabricamos.

Vivemos hoje a realidade da imagem, da projeção idealizada e, consequentemente, a do distanciamento do eu, da perda da identidade e, com essa postura, assumimos a nossa alienação. E Machado, lá atrás, há mais de um século já havia vislumbrado esse cenário e o registrado, ali, em sua literatura com a transformação de Jacobina em alferes da Guarda Nacional. Jacobina trocou um nome por um título, uma indumentária comum por uma farda. Revelou Machado, com essa narrativa, sua percepção perspicaz das fraquezas humanas e o fez apoiando-se apenas no léxico, nas palavras.

São as astúcias de um escritor nascido pobre e quase preto. Porque era mulato o nosso Machado. E órfão. Que sina! Órfão e mulato. E nasceu na era da escravidão. Tinha tudo para não dar certo. Para ser “gauche” na vida, diria Drummond. Para mergulhar na ignorância. Não frequentou escolas e aprendeu tudo que hoje nos ensina com muito, muito esforço, e a ajuda de algumas pessoas que dele se apiedaram. Conheceu o alfabeto e a gramática, além de outras línguas, e com essas ferramentas delicadas conquistou o mundo e se fez mestre na arte da escrita e da ficção.

O que diria Machado, me pergunto, se vivo ainda fosse e convivesse com as reclamações contínuas, hoje, de que as pessoas não aprendem porque são pobres, não tiveram oportunidades na vida, não pertencem às classes elitizadas, ou as escolas não são eficientes. Ou, ainda, a justificativa que está na moda: não se expressam bem porque a nossa língua é muito difícil e, agora, com a recente reforma ortográfica, “tudo ficou ainda mais complicado”, dizem eles. Sartre ao afirmar: “O inferno são os outros”, parecia conhecer a mente dos nossos jovens que jogam sempre para o outro a responsabilidade de suas falhas ou de sua preguiça diante do estudo. Ah! Esses jovens!


Politicamente correto ou incorreto?

Os brasileiros adoram slogans e eufemismos. Além dos “malfeitos”, eufemismo predileto da Presidente atual para proteger os políticos corruptos, e do Bolsa-reclusão que beneficia os familiares de bandidos, temos o slogan “Brasil um país de todos”, em que só os tolos acreditam. Agora, para comemorar o Dia das Mães, surgiu o programa denominado “Brasil carinhoso” para famílias que tenham crianças de 0 a 6 anos em casa. Mais uma bolsa (eleição?) no valor de sessenta ou setenta reais, não sei bem.
Que cuidado com as crianças! Que carinho! Só não entendo por que os postos de saúde para o atendimento dessas crianças é tão precário, tão ineficiente, levando as mães ao desespero quando deles necessitam para consultas ou internações. Não há médicos, dizem os atendentes. Não há leitos, confirmam os médicos impotentes. Não seria um passo mais afetivo e efetivo oferecer melhores condições de saúde a todas as crianças e de todas as idades? Pois me parece que todas elas merecem os mesmos cuidados, a mesma atenção. Ou estou equivocada? Não é o que diz o slogan “Brasil um país de todos”?
São tempos de farsa estes em que vivemos hoje. Nunca se mentiu tanto quanto agora. Abrimos os jornais e as notícias diárias trazem as fotos dos políticos pilantras e seus comparsas sempre negando seus atos ilícitos. Se perguntados sobre o relacionamento entre eles, negam e juram não se conhecerem até que gravações (permitidas ou não pela justiça) revelam o contrário; fotos e mais fotos comprovam a sua longa e íntima amizade, e a conta bancária que atinge cifras inimagináveis em tempo recorde comprova que a fortuna amealhada, de ambas as partes, não é fruto de trabalho honesto e, sim, de desvio de verbas públicas acumuladas com os impostos que nós, brasileiros bonzinhos, pagamos.
Certo estava o Padre Antônio Vieira que já em seu tempo assim analisava o discurso dos políticos: “eles não querem o nosso bem, eles querem os nossos bens”. E o que se observa cada vez mais é que eles primeiro, e com jeitinho, nos tomam o voto, e depois a maior parte do salário por meio de impostos abusivos. E com a fortuna arrecadada, que deveria ser revertida em serviços à população, fazem a festa. Aqui ou em Paris, regada às melhores bebidas e compartilhada com as mais belas e caras mulheres. Este é o país da tolerância sem limites, não há dúvida.
Mas diante das câmeras esses homens públicos se dizem honestos, choram e se mostram indignados com a chantagem de que estão sendo vítimas graças às intrigas de seus opositores e à voracidade da mídia, essa máquina espúria, segundo eles, de criar fatos e assim expô-los, “políticos honestos” que são, à execração do povo que, por ser inculto em sua maioria, acaba por dar mais crédito aos lamentos dessas figuras inescrupulosas que às contundentes provas exibidas sem trégua pelos meios impressos e televisivos de comunicação. Daí o desejo, não confessado pela maioria, de calar a impressa por meio de uma ferramenta coercitiva: o marco regulatório.
Agora tem início a “Comissão da Verdade” para apurar os crimes no período da ditadura, mas já começa com uma visão unilateral. Isto significa: uma visão pela metade. Só serão examinados os crimes praticados pelos militares e não pelos terroristas. Palavra hoje, por motivos óbvios, colocada no ostracismo. Esta é uma medida correta ou incorreta?
“Transparência” é a palavra da vez. Tudo tem que ser transparente, dizem os aliados do governo, após pressão forte da imprensa e da parte esclarecida da população, exigindo acesso às informações relativas a receitas, despesas, licitações e outras e outras... Mas como será a aplicação dessa lei, a Lei de Acesso à Informação? É isso que nos preocupa. Será que os dados serão confiáveis? Não serão manipulados? Haverá a esperada Transparência mesmo? Pois o que temos observado, contudo, é que quanto mais se banalizam as palavras, menos peso elas adquirem. Ou seja, quanto mais as repetimos, menos as praticamos. Gostaria muito sim que houvesse transparência na fala e nos atos dos governantes, assim como nas planilhas e informações ao nosso dispor, para que pudéssemos crer que este é realmente um país de todos.



As lições da mídia

De pessoas experientes, sempre se ouviu que a fase de aquisição do saber é contínua, é infinita, não tem data de término, pois o conhecimento tem de ser constantemente atualizado e, às vezes, até renovado porque o mundo, como nós, é também mutante. Seria essa, então, a causa de tantas opções de cursos e atividades hoje, em todas as áreas do saber, e também do sentir e do fazer? Talvez sim, mas é bom estar atento aos estímulos que recebemos porque nem tudo que é colocado pela mídia, para atender ao mercado, é tão benéfico assim para nós.
Com a evolução do marketing recebemos, por várias mídias, propostas como cursos de especializações, de MBAs e outros, que poderão impulsionar carreiras; ou viagens de intercâmbio para aperfeiçoar o conhecimento em áreas como artes, arquitetura, filosofia e tantas outras; ou cursos que oferecem técnicas em áreas específicas, como cinema, teatro, mas nem sempre as escolas que os oferecem detêm a credibilidade necessária para ministrá-los. E assim perdemos tempo e dinheiro, e só ganhamos frustrações.
Por outro lado, temos ofertas de aulas de culinária, as mais exóticas, porque está na moda agora homens e mulheres irem para a cozinha e darem uma de “chef” apenas para impressionar os amigos; cursos de maquiagem para criar uma nova imagem de si, porque o importante é parecer (ou aparecer) e não mais ser; o assédio das academias para as aulas que visam ao aperfeiçoamento do corpo, e outros apelos como o aprendizado e o aprimoramento de técnicas para aumentar a sedução feminina no relacionamento amoroso, e também o prazer nas relações sexuais, o que vem tornando nossas adolescentes grandes especialistas no assunto.
Nestas técnicas, as revistas denominadas femininas são as mais especializadas. Elas que no passado ensinavam a bordar e fazer tricô, o que colocava a mulher num detestável plano mental inferior ao do homem, hoje, apesar do aparente avanço pela ousadia em tocar na questão do corpo e do prazer, parecem querer mantê-la no mesmo patamar ao dar ênfase apenas ao aperfeiçoamento destas “habilidades”, em detrimento da aquisição de competências mais significativas para a superação do seu status de “inferioridade cognitiva” (assim classificadas em um passado jurássico) em relação ao sexo oposto. E essa diferenciação de QI pode, às vezes, começar em casa mesmo com uma educação errônea, pois para muitos pais: a menina tem de ser bonitinha, e basta; o menino, não, ele tem de ser inteligente. E depois, por incrível que pareça, reclamam que a garota não sai da frente do espelho.
Isso não quer dizer que a beleza não deva ser cultivada, aprimorada, admirada. Não! O belo existe, está no mundo: nas artes, na natureza, em toda parte, e é o que nos sensibiliza e oferece motivação para participar desse processo instigante e paradoxal que é o viver. Mas até para se apreciar em profundidade essa beleza múltipla, e dispersa, é preciso conhecimento. Umberto Eco, conhecido escritor italiano, trata dessas questões em duas de suas obras: História da beleza e História da feiúra. Eco foi alguém que se debruçou sobre os livros para nos oferecer uma análise do que se constitui a beleza e seu oposto. Ele não se satisfez apenas em observar lindas mulheres, e certamente desejá-las; em apreciar obras de arte nos museus e fora deles, mas buscou entender o porquê de formas tão perfeitas, tão divinas, capazes de nos levar ao êxtase diante delas.
O que parece faltar a algumas mídias hoje, e em especial a esse tipo de mídia: as revistas femininas, é um equilíbrio entre as matérias por elas veiculadas. Falta inserir em suas páginas assuntos mais relevantes como literatura e cinema, música de qualidade e teatro, por meio de curtos e leves ensaios e resenhas críticas sem hermetismos; de entrevistas, mas não apenas dos famosos, dos globais, das “panicats”, e sim de intelectuais que gradualmente despertem o gosto para o saber e também para o belo em um sentido mais amplo e possam, dessa forma, contribuir para uma diminuição da distância abissal que ultimamente se vem observando entre mente e corpo, buscando o espelhamento entre ambos, isto é, uma mente privilegiada, porque culta, em um corpo divino, porque escultural, perfeito.
Chegaremos lá? Não sabemos, mas não custa sonhar e até arriscar sugestões, pois sabemos que a mídia move o mundo hoje e o que ela trouxer em suas páginas, seja imagem seja texto, se transformará, sem dúvida, em um modelo para o qual não faltarão seguidores.



À espera de Ulisses



A leitura dos clássicos é sempre atual, daí a sua classificação. Obras como a Odisseia, de Homero, não caem no esquecimento porque estão fortemente inseridas na memória coletiva, fazem parte de todo um imaginário que nos serviu de modelo na esfera dos valores humanos. A heroicidade do personagem Ulisses, a fidelidade de Penélope, a servidão incondicional das criadas nos comovem e fortalecem os princípios da ética e da moral.

Contudo, há dúvidas quanto à existência do tão famoso autor grego Homero, a quem também cabe a autoria da não menos clássica obra a Ilíada. Obra essa que inicia a mais conhecida narrativa épica ocidental: a Guerra de Troia, travada pelo rapto da bela Helena, esposa do rei Menelau, de Esparta. Não temos dados científicos comprobatórios de sua história de vida. Conhecemos, sim, a saga de Ulisses, seu personagem e rei de Ítaca, que em sua viagem pelos mares bravios, enfrentou incontáveis perigos e só retornou à sua cidade, para reconquistá-la, dez anos após sua partida. Chegou disfarçado de mendigo e, apesar da farsa por ele encenada para driblar os pretendentes à mão de sua esposa Penélope que se amontoavam pelo palácio, no aguardo da escolha da desejada musa, só foi reconhecido pela escrava ao lavar os seus empoeirados pés pelo longo trajeto de volta, ao deparar-se com a cicatriz em sua perna.

Mergulhamos nessas envolventes narrativas épicas desde muito cedo não só pela literatura, mas hoje também pelo cinema e outras mídias, mas desde a antiguidade se procura, sem sucesso, uma biografia de Homero. Isso, contudo, é uma questão menor e não é única, pois outros relatos fabulosos também prescindem de uma autoria confirmada e vão se perpetuando pelos séculos e até milênios ad infinitum. O que nos interessa mesmo é o teor dessas narrativas míticas que surgiram no mundo da oralidade e passam de geração a geração porque aceitas coletivamente, sem questionamentos de autoria ou veracidade. É que elas estão intrinsecamente relacionadas à nossa vida e à nossa história, ao nosso desejo de justiça, de vencer obstáculos e de chegar à vitória, independentemente de sua dimensão e sua repercussão.

Dentro de nós existe sempre o desejo de fazer a luta valer a pena, seja ela em que direção for: seja na superação de um obstáculo, na busca de um emprego, na realização de um trabalho qualquer. Parece ser isso também o que dá sentido à vida. Daí a nossa frustração diante dos insucessos. Daí o nosso medo também de não saber responder aos enigmas que nos propõem as esfinges do mundo contemporâneo. Esfinges no plural, sim, porque elas se globalizaram também. Estão elas em toda parte, materializadas na estrutura de nossa sociedade e nos devorarão sem piedade se não soubermos decifrar em tempo hábil as mensagens sub-reptícias que permeiam seu discurso.

Os meios de comunicação se multiplicaram, mas alguns se babelizaram, outros se subordinaram a governos inescrupulosos, e nos sentimos à deriva. Quem está do nosso lado e quem está contra nós? Quem busca abrir nossos olhos e quem deseja ofuscar nossa visão? Não sabemos mais. Mas quem nos condena a impostos cada vez mais altos, sem retorno, e amplia o Estado com um contingente cada vez maior de “inexplicáveis assessores” pensa ou não no nosso futuro? E quem oferece financiamentos alongadíssimos a juros impagáveis porque altíssimos para a aquisição da casa própria quer o nosso bem ou o nosso voto? Para muitos, essas atitudes são um enigma de difícil decodificação; para outros, nem tanto.

A razão é que muitos se vêem na narrativa fabulosa da Odisseia, no barco de Ulisses, diante do canto da feiticeira Circe e sabem que se ouvirem o seu canto, se se deixarem seduzir por ele, serão por ela dizimados e não mais retornarão à Ítaca, pois serão desumanizados, transformados em porcos como na história mítica. Por isso, é preciso fazer como Ulisses que procurou tapar os ouvidos de seus argonautas com cera para não se deixarem enfeitiçar por Circe e, assim, tocar o barco para a frente. E, ainda, seguindo o exemplo do herói grego, amarrar-se fortemente ao barco para apesar da voz maviosa que vem da ilha da fantasia, não se deixar levar pelo seu canto enganador e através de estratégias dignas de uma verdadeira aventura homérica, ter como objetivo calar esse som e resgatar essa ilha. Conseguiremos isso? O tempo dirá.


Texto publicado em 2007, no Jornal O avaiense. E ele continua atual em 2012.

O que é ser elite?



O significado das palavras pode ser alterado no decorrer do tempo. A língua é dinâmica, dizem os linguistas. Concordo. Uma palavra sofre alterações de acordo com a ideologia vigente. No passado, de todos aqueles que estabeleciam um relacionamento afetivo fora do casamento, dizia-se que tinham amantes. Hoje, a palavra amante foi substituída por namorada/namorado. Muito mais amena, anulando quase a carga negativa que a outra continha, sem que alteração nenhuma tenha sofrido o relacionamento extraconjugal quanto à sua ilegalidade.
Hoje, a metamorfose das palavras encontra-se, mais do que nunca, a serviço do poder. Por exemplo, pela ótica da política atual em nosso país, as pessoas do governo que desviam verbas públicas para a sua conta bancária, não são corruptas (termo pesado), elas apenas praticam “malfeitos”, segundo a presidente. Se forem do seu partido, claro! Os demais continuam corruptos e cometem os graves crimes chamados, pelo PT de outrora, “crimes de colarinho branco”. Ou seja, os ricos, os empresários, os banqueiros e os políticos da oposição. Estes últimos, por serem em sua maioria oriundos de famílias com melhor poder aquisitivo, são classificados como elite, com uma conotação muito negativa. Como se aqueles que nasceram em famílias estruturadas, cujos pais conseguiram oferecer uma boa educação a seus filhos, e muitas vezes à custa de grandes esforços, privando-se mesmo de outros sonhos para que seus descendentes pudessem “ser alguém na vida”, são vistos ambos, atualmente, como indivíduos nefastos à sociedade, “personas non gratas” ao sistema porque “não são trabalhadores”. São eles rotulados de “exploradores” das classes menos privilegiadas. Ainda que sejam professores e que trabalham muito para educar, indiferentemente, os filhos dos ricos e dos pobres.
O que me leva, nesta crônica, a criticar a postura ensaiada do poder vigente para cristalizar essas frases e essas ideias na mente dos menos esclarecidos, fazendo assim com que eles (pura massa de manobra de seus líderes) se revoltem contra os que parecem ter mais do que eles, foi um incidente nesta semana, na Avenida Paulista, o orgulho dos paulistanos. Sim, orgulho, mas que vem se transformando cada vez mais em um inferno por aqueles que querem macular a imagem de São Paulo, ou melhor, da administração do Estado e da Prefeitura, por motivos já conhecidos: apoderar-se do último reduto de resistência ao PT para este se tornar um poder hegemônico, ou seja, totalitário no país.
Vamos aos fatos. Na manhã de quinta-feira passada, a segunda do mês, tudo me parecia tranquilo quando saí para um compromisso de trabalho e, como preciso fazer caminhadas, resolvi ir a pé. Na volta, fui surpreendida por uma multidão, um aglomerado compacto, que tomava toda a calçada e impedia os transeuntes de ir em frente. Educadamente comecei a pedir licença, mas pela fúria enlouquecida e pelos “gritos de guerra” dos sindicalistas contra os patrões e o governo paulista eu não era ouvida. Insisti várias vezes, e sempre de forma educada, até que um deles se virou e com olhar de desdém gritou: “Essa elite...!”.
Depois de todo o transtorno, vim para casa pensando por que fui classificada de forma pejorativa como “elite”? Eu não me vestia de forma sofisticada, apenas discreta; não usava joias nem bijouterias; estava a pé, como eles, e realizando o meu trabalho. Apenas falava em voz baixa, solícita, e não aos gritos, como toda pessoa da minha faixa etária e bem educada. Se isso significa ser elite, eu sou, e agradeço muito a meus pais por essa dádiva. Se ser elite é ter estudado com afinco e dedicação e vencido as barreiras financeiras com que a vida de repente nos surpreende, eu sou elite e me orgulho disso. Se ser elite é ter recebido Bolsas de Estudo da CAPES e do CNPQ para os cursos de Mestrado e Doutorado, pelos projetos com qualidade que apresentei, desenvolvi e publiquei, para que outros possam usufruir dessas pesquisas, e não por um atestado de pobreza apenas como se vê hoje, eu me sinto muito envaidecida com esse novo título e vou usá-lo agora com todo o respeito que ele merece.
Descobri, então, que pertenço a uma elite intelectual. Eu sou elite! Que honra!
Obrigada sindicalistas!