Dias conturbados


Estamos vivendo dias difíceis, não podemos negar.

Só vejo o mundo através da vidraça, como muitos talvez. As notícias são contínuas, mas perderam em muitos casos a credibilidade. Por isso, ver a realidade do entorno, do espaço lá fora pela TV, não mais me seduz nem me convence. Cada emissora tem seu viés ideológico e por ele são filtradas as "verdades" transmitidas.

E o pior são algumas mensagens que recebo em que a verdade é  transmitida como dogmática, ou seja, inquestionável. Lembro-me, então,  de algumas citações sobre essa temática, inclusive  de uma reflexão de  Bertrand Russell (1872-1970), matemático e filósofo inglês, "O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas." Dá para dele discordar nos dias de hoje? 

Por isso, prefiro evitar discussões acaloradas e também os canais de notícias e me concentrar em outros que trazem, ao meu espaço particular, ao meu aconchego, apenas imagens da flora exuberante e da fauna infinita deste planeta ambiguamente sedutor e aterrador; de imagens urbanas modernas e seu histórico de desenvolvimento desde suas origens. Aprendo, me encanto, e os dias passam agora com mais leveza do que os primeiros que muito me entristeciam.

Outra atividade, ou posso mesmo chamar de forma de distanciamento do  real que me aborrece, é o hábito saudável, adquirido na infância e estimulado por meu irmão mais velho, que é a leitura. O outro mais novo que ele  e 15 meses mais do que eu, também já lia muito e quando fiz 14 anos me deu de presente "Guerra e Paz", de Liev Tolstoi. Imagino nos tempos atuais um garoto de 15 anos presenteando uma irmã de 14 com uma obra dessa qualidade literária. Inimaginável.

Li os quatro volumes e não mais os reli. No final de abril último, retomei essa leitura do excelente escritor russo, agora com outros olhos e em uma nova publicação encadernada, em dois volumes, mas com as letras de tamanho reduzido e o peso de cada volume aumentado. Ou seja, não dá para ler na cama. Então, leio na poltrona até dar o sono e depois complemento com um livro mais leve (literalmente), de poucas páginas,  que sempre tenho na mesa de cabeceira. Aliás, tenho vários, de acordo com o meu humor nessa hora. Sei que ler mais de um livro, simultaneamente, não é uma postura correta, mas ...

Não sei de amigos meus que tenham lido um escritor russo contemporâneo  Andrei Makine. Confesso que eu o desconhecia até o início deste ano quando adquiri  "A terra e o céu de Jacques Dorme". Eu me apaixonei pela narrativa descontínua, complexa é verdade, numa linguagem de uma poeticidade rara. Ao término, não me senti satisfeita com a minha intelecção de um trabalho literário tão envolvente, tão humano de um soldado  num cenário de guerra, e de desencontros afetivos, desde a infância, vivida num orfanato pela perda dos pais sob o cruel regime de Stalin. Não aceitei as dúvidas que persistiram e recomecei a leitura. Que obra! Que autor!  Hoje, já recebi um novo livro dele "A música de uma vida", que comprei pela internet.

Para quem nunca ouviu comentários sobre esse russo mágico, procure no site "Bons livros para ler" e saberá um pouco mais desse escritor, doutor em literatura francesa, que se tornou professor de língua e cultura russa, em Paris. Recebeu o Prêmio Goncourt. e outros. Na quarta capa de "A música de uma vida", encontramos:

" A arte de Makine é a concisão que, como temiam os soviéticos, é subversiva"

New York Times Book Review

Nesta noite, inicio ansiosa uma outra aventura pela nova obra de Andrei Makine, com o relato de um pianista  na extinta União Soviética e seus percalços para dissimular a sua identidade, ou a sua existência,  naquela região inóspita, naquela época. Diante dessas revelações, o nosso desconforto diante da pandemia se torna bem menor. 

Depois, voltarei para o outro russo, mais prolixo, Tolstoi.