Tempo de promessas

Ligo o computador e quem aparece em minha tela, agora? Uma das minhas paixões. Minha gatinha Kelly. Um tigresa de olhos dourados e carinha desenhada pelo grande arquiteto felino que lhe deu formas perfeitas. Olho para ela e me deparo com sua tranquila pose de quem sabe que é querida por todos da família e, por isso, talvez esteja em paz com o mundo. Quisera eu ter sensação similar em relação aos que me rodeiam. É que, às vezes, as pessoas nos frustram, porque os homens nem sempre são tão transparentes quanto os animais. Alguns, de cordeiro, só vestem a pele. E como nos enganam! Quem não teve essa experiência no campo afetivo, de trabalho ou mesmo na esfera política?
Hoje, contudo, não é dia para pensarmos nos fatos negativos que pontuaram alguns momentos por que passamos. O ano está se findando de novo, sem o apocalipse aguardado por alguns, e até com grandes expectativas para muitos. Entre estes, podemos localizar aqueles que se distanciam das notícias políticas dizendo, com desdém até, que “política não enche barriga”. Mas pode esvaziá-la, penso eu. Para esses, o mundo é bom e no fim tudo dará certo. São os alienados do mundo verde-amarelo.
Muito longe estou dessa forma de pensar e levar a vida. Tenho muitos sonhos, como todo mundo, e faço também mil promessas para mim mesma para o próximo ano. Mas ciente estou de que boa parte desses sonhos não depende apenas de minha vontade. Eles são mediados, direta ou indiretamente, pelos que nos governam. Pelas leis que dizem o que podemos e não podemos fazer e como devemos nos comportar em sociedade. Leis que ora nos beneficiam e ora nos prejudicam. Leis aprovadas e assinadas muitas vezes à nossa revelia, como fumar, beber, e outras e outras.
E lei deve ser respeitada, diz a Constituição. O que é correto, pois sem obediência às leis surge o caos, não há democracia, não há liberdade de pensamento e expressão. Por isso, é importante estar atento às noticias em discussão pelos integrantes dos três poderes, acompanhar os seus atos para não termos surpresas depois. E colocar a nossa voz e a nossa indignação, ou aprovação, nas redes sociais quando se fizer necessário.
No ano que se finda agora, coisas boas e ruins aconteceram, como sempre, mas muitas foram memoráveis. O julgamento do Mensalão tornou-se assunto de todas as camadas sociais. Porque apesar dos “data vênia” dos ministros, as expressões corrupção ativa, corrupção passiva e formação de quadrilha soaram perfeitamente compreensíveis a toda a população, porque brasileiro sabe bem o que significam essas palavras, pois todas estão ligadas a outras, como roubo e bandidagem. E a maioria vibrou ao constatar que também os grandes ladrões podem ir para a cadeia e não apenas os “ladrões de galinhas”, graças a uma equipe de juristas, capitaneada por homens íntegros como Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Celso de Mello e outros, que priorizaram a responsabilidade ética de seu fazer e não a subserviência aos que os colocaram no mais alto cargo da justiça brasileira, o STF.
Assim, o ano de 2012, como um livro de ficção ou de história, ao chegar à última página deixa o leitor feliz. Ele percebe que não perdeu seu tempo com narrativas cujo desfecho já conhecia, mas com um final surpreendente que julgava impossível, o que permite a ele voltar a sonhar com histórias que, como essa, poderão estar presentes em novas obras a serem folheadas em 2013.
Que os deuses não nos abandonem, agora, e que os roteiros que irão se desenvolver nos noticiários do Ano Novo sejam ainda melhores!

O outro

Perigosamente perto
Sem presença concreta
Sem nome
Sem voz
Arranhando o suor
Que escorre do sonho
De ser só fantasia
Na pele do outro.
Na penumbra da imagem.

Tempo de lembranças

A lista de presentes aumenta dia a dia. E cada um deles numa caixinha especial. A lista da ceia também. E esta já começa a ganhar um formato, entre doces e salgados, de acordo com quem virá. A torta de nozes não pode faltar. É a impressão digital da tia que, presente ou ausente, se programa para não frustrar a expectativa dos participantes que por elas - tia e torta - esperam o ano todo. O tender à Califórnia, preferência do primogênito, é um prato insubstituível. O pavê, a salada especial e, também, o camarão crocante e dourado, ganham aplausos e destaque na distribuição de pratos e guloseimas na arrumação da mesa. São eles imprescindíveis na lista de preparativos para mais um Natal em família.
Dezembro é uma época festiva. A cidade muda o visual com a decoração das lojas e edifícios públicos. Em São Paulo, a Avenida Paulista e o Parque do Ibirapuera são os “points” para visitação noturna quando os projetos natalinos ganham cores e iluminação especiais e criativas, em motivos que resgatam a tradição cristã: o nascimento de Cristo.
Poucos, porém, se lembram disso, porque a vida agitada das grandes cidades não leva mais a população às igrejas para admirar os presépios, reconstituindo o local simples e sagrado onde nasceu Jesus - visita obrigatória das crianças de minha geração -, mas sim aos shoppings centers e às ruas redesenhadas pelos telões, pelas árvores decoradas com laços, sinos e lâmpadas de led. É a beleza estilizada e computadorizada “made in China” que ocupa os espaços abertos de dezembro nos grandes aglomerados urbanos.
Mas, no espaço familiar e reorganizando minha lista natalina, as recordações de natais passados invadem minha mente. As imagens dos que hoje estão ausentes, e a quem queríamos tanto, deixam um lugar vago à mesa, mas não em minha lembrança. São rostos, são frases, são gestos tão vívidos que retornam em momentos de silêncio e interiorização, embora sutilmente resguardados para não quebrar, entre os presentes, o encantamento que o Natal nos devolve a cada ano.
Mas desejando ou não, a cada novo Natal, sinto que a memória busca um outro ritmo, ganha nuances outras e faz transitar por minha mente intocáveis figuras distantes: queridas, etéreas, eternas. Essas sensações parece que nos humanizam. Num mundo de necessidades urgentes, marcadas pelos ponteiros do relógio, elas se tornam um necessário refúgio para reter a evanescência natural de um tempo que lentamente se esvai, se desfaz e com ele as nossas lembranças. Um tempo de perdas menores e maiores que somadas registram a nossa trajetória. E isso me lembra e me aproxima das palavras de Fernando Pessoa, perspicaz observador das sensações humanas, quando poeticamente traduz esse sentir ao dizer:
“Sinto mais longe o passado,/ Sinto a saudade mais perto.”
E a saudade de alguém ou de alguma coisa, que sempre nos acompanha, mas que em dias como o Natal tende a se tornar mais presente e a desdobrar-se em múltiplas imagens. E estas agora roçam a nossa memória e parecem nos dizer: não estamos tão longe assim, estamos também muito perto.
Viver, então, é isso: ora estar aqui; ora estar ali. Vamos, por isso, nos reunir, vamos comemorar, porque ainda estamos juntos e a vida é um traço, apenas um traço frágil, entre o começo e o fim.