As palavras engaioladas

Hoje, reiniciei minhas aulas no período de férias para alunos que, por um desvio de percurso, acabaram se perdendo no emaranhado de provas ao final do semestre e, por isso, não conseguiram aprovação. É denominado Recuperação de Estudos esse curso. E os jovens o frequentam como se nele houvesse algo de místico. Entram silenciosos na sala, com passos lentos, quase imperceptíveis. Ouvem atentos as explicações dadas por nós, os mestres, como se nos vissem e ouvissem pela primeira vez. É uma situação singular e meio intimista se comparada à ruidosa participação desses mesmos alunos em aulas nos cursos regulares. O que é próprio dos jovens dessa faixa etária.
Diante de uma ambientação diferenciada, me programo também para uma dinâmica diversa da adotada durante o semestre letivo. Hoje, por exemplo, após colocá-los cientes do formato do curso com duração de 36 horas, levei-os a refletir sobre as palavras, a importância das palavras, a retórica e a persuasão, estudadas por Aristóteles na Antiga Grécia, e que ainda nos servem de guia nos dias atuais e, certamente, terão longa vida no ensinamento sobre a exposição das nossas ideias pela linha do verbal.
Parti de um fragmento de Machado de Assis: “Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução”. Fui lembrando a eles fatos históricos, políticos e até poéticos que revolucionaram o mundo, a mente e a postura das pessoas. Gandhi não foi esquecido e a sua palavra de ordem de “não violência” que acabou libertando a Índia do jugo da Inglaterra; Hitler e a sua retórica contra os judeus, que culminou com o holocausto; o slogan publicitário e poético, “I like Ike”, que elegeu Eisenhower presidente dos Estados Unidos, à época. E outros mais numa teia que poderia ser infinita no passado e no presente.
O resultado foi um contágio inesperado. Todos tinham um comentário, um exemplo, uma lembrança que foi enriquecendo a discussão do grupo e facilitou depois a produção de um texto opinativo sobre o poder e a magia da palavra. Ninguém reclamou que “não sabia como colocar no papel as ideias” (chavão excessivamente gasto). As palavras, que se prendiam como pássaros engaiolados, se soltaram num voo livre, sem grades e sem medos. E alguns redigiram textos muito interessantes que surpreenderam pelo conteúdo e pela poeticidade. Falaram do perigo que rondava certas falas, do vazio das palavras dos políticos, da ausência significativa delas no discurso amoroso, da feitiçaria que era transformar ideias e sonhos em frases e textos. Saíram me agradecendo pela aula e eu a eles pela dádiva de ter sido ouvida e compreendida numa via de mão dupla.
Após a aula, enquanto guardava meu material, comecei a refletir sobre as agruras e as delícias do ofício de ensinar. Ensinar pode ser muito gratificante, quando somos adequadamente ouvidos, e exatamente o contrário quando isso não ocorre. Cria-se um elo, no primeiro caso, o que nos torna mais humanos porque o diálogo coloca no mesmo plano professor e aluno, eliminando as diferenças de idade e repertório. E é sempre por meio da palavra, esse elemento mágico, que nosso conhecimento de tantas e tantas leituras se torna o veio comunicante entre nós que vivemos mais entre as páginas dos livros e eles que se movem num mundo mais eletrônico.
Lembrei-me, então, de uma obra delicada e sedutora Lições de feitiçaria, de Rubem Alves, e de um trecho que vou resgatar aqui para compartilhá-lo com você, leitor: “Bons professores, como a aranha, sabem que lições, essas teias de palavras, não podem ser tecidas no vazio. Elas precisam de fundamentos. Os fios, por finos e leves que sejam, têm de estar amarrados a coisas sólidas: árvores, paredes, caibros. Se as amarras são cortadas, a teia é soprada pelo vento e a aranha perde a casa. Professores sabem que isso vale também para as palavras: separadas das coisas, elas perdem seu sentido.”