Uma foto na retina

     "Rússia" - fotografia de Célia Mello


No enquadramento da imagem, os rostos se aglomeram. Os quase tímidos sorrisos também. As cabeças protegidas por gorros. É quase inverno. Garotos entre sete e dez anos, talvez. Entre eles, um menino rouba a cena. Ou seria seu boné de lã xadrez? Em preto e branco, a infância bem cuidada num recorte calculadamente enquadrado traz à luz a curiosidade pelos objetos do mundo. Registrado pela câmara de Célia Mello, o momento ali se presentifica e as faces descontraídas dos garotos são plasmadas para uma infinitude temporal. Europa? Cartier-Bresson? “Rússia” é o título da foto, mas a fotógrafa é brasileira. Os garotos, não. A similitude imagética gera possibilidades. Desperta lembranças de outros espaços, de momentos eternizados pela câmera de quem se diferencia pelo olhar seletivo e dedos ágeis. Entre Bresson e Célia, algumas décadas. E distâncias abissais, diriam alguns críticos, talvez. Sim e não, porque os olhares divergem. Mas são inegáveis também aí os instantes de efêmeras aproximações, como a imagem do garoto de boné de lã xadrez, em meio a outros rostos, gorros e bonés. Um punctum barthesiano. Os meninos não dirigem o olhar para a câmera em suas mãos, mas a fotógrafa vê a imagem deles ao alcance de sua objetiva. Ela ali os capturou em sua transparência vítrea, cristalina, que agora revela ao outro, ao mundo, o seu olhar sensível. Um olhar bressoniano, sem dúvida. Um flagrante único para uma artista que envereda por outros caminhos da fotografia de invenção, e estranhamentos. Nos múltiplos Eus de desdobramentos poéticos. Mas essa foto...Os garotos da Rússia...O sorriso...O boné...
Ela se cola à nossa retina.




As mudanças de rumo

Ao acordar pela manhã, recebo o jornal que me traz as notícias do que aconteceu na véspera e durante a noite. Hoje, não mais surpreendem porque a TV e a internet já se antecipam e as veiculam antes, ainda que de forma meio apressada e por isso sem muita precisão. Os bons jornais, porém, informam com maior profundidade os acontecimentos e, assim, cultivam a credibilidade dos leitores, inclusive a minha.
Tomo café e reclamo das ameaças do retorno daquele imposto perverso a CPMF. De novo! eu digo revoltada. Não seria mais justo recuperar o dinheiro público desviado pelos políticos desonestos do que assaltar ainda mais os nossos parcos rendimentos? Minha voz, contudo, só é ouvida por Baby, meu cão meio labrador, que comigo parece concordar abanando a cauda.
Em seguida abro as páginas de outro caderno, o de arte e literatura, e me deparo com o lançamento de uma nova publicação, sempre imperdível, de Walter Benjamin.  Esse moderno pensador alemão descendia de uma família de judeus e, para não cair nas mãos da Gestapo, suicidou-se em 1940 com 47 anos de idade. Que perda! Sua obra, porém, é conhecida no mundo acadêmico de todo o Ocidente e em boa parte do Oriente, e nos leva a uma reflexão séria sobre a literatura, o mundo urbano, os destinos do homem e do mundo.
Passo, então, para um caderno mais específico: de Educação. Levo um susto. My God! Os nossos garotos, alunos do Curso Fundamental com idade em torno de oito anos, não sabem ler e escrever. Não entendem o que leem e desconhecem os ensinamentos básicos de Matemática, ou seja, não conhecem as quatro operações! O que houve? fico me perguntando. Mas não era o governo anterior tão preocupado com a Educação? Não se gabava nos palanques que colocaria todos na escola e para isso daria cotas aos pobres para o ingresso nas universidades? O que houve?
 Fecho o jornal e, em silêncio, começo a mastigar lentamente o meu pão com manteiga e geleia, (geleia agora sem acento, depois da Nova Ortografia assinada pelo “culto” Presidente à época, tão “conhecedor” da labiríntica gramática da nossa Língua), pensando nesses pobres meninos. Meninos esses que amanhã, sem os conhecimentos necessários para a sobrevivência, vão comer “o pão que o diabo amassou” e que foi sadicamente preparado na cozinha do engodo pelo artesão de metáforas domésticas e futebolísticas, e servido com sabor de vitória, porque aplaudido pelos companheiros do atraso e da mentira.
Penso, então, no texto que escreverei para o jornal distribuído a tantas famílias que atentas acompanham o desempenho dos filhos na escola, o que é certo, e sinto uma pena ainda maior daqueles pais que nada sabem, porque os tempos eram outros e não conheceram os bancos escolares, mas gostariam que seus filhos tivessem um futuro melhor e acreditam que mandando esses garotos à escola, eles terão um amanhã promissor e uma profissão garantida. Mas não é bem assim.
Sabemos nós que não é essa a imagem que se delineia para eles em um futuro não muito distante. Sem conhecer a própria língua e sem decifrar os mistérios dos cálculos, não desenvolverão o raciocínio e as competências para o mundo digital e dos saberes múltiplos, que é aquele em que vivemos hoje. Não lerão Walter Benjamin nem outros filósofos, nem escritores que nos levam a descobrir a realidade em que vivemos.
Provavelmente, e com poucas exceções, serão eles trabalhadores sem nenhuma especialização ou, o que é pior, poderão entrar para o mundo da marginalidade, sem que ninguém assuma a autoria desse crime. Pobres meninos!

O devaneio da cabana

Como é bom voltar para casa! Após um dia exaustivo de tensão no trabalho, de horas intermináveis no assento do carro, pelo crescente congestionamento, ou mesmo no assento do avião, entre as nuvens e as revistas de bordo, a sensação é quase indescritível. É bom retornar ao espaço do nosso universo particular. Seja ele de amplos e envidraçados compartimentos; seja ele de pequenas e aconchegantes dimensões. É o nosso refúgio.  
E ali, entre os objetos que são uma extensão de nós, e que os reconhecemos até na ausência da luz, construímos a nossa fortaleza para enfrentar os demônios que nos afligem: os relatórios que temos de apresentar e estão inacabados; as orientações dos especialistas para melhorar o nosso desempenho profissional, e que ainda não assimilamos; os projetos de vida continuamente adiados, mas que exigem a nossa atenção. Enfim, todos os pequenos e grandes problemas que arranham diuturnamente a nossa máquina cerebral.  Mas ali tudo parece adquirir uma configuração do possível, ou da acomodação, pela sensação singular de estar em casa, de estar seguro.
E essa sensação de segurança é ancestral, nos remete ao homem primitivo, que se protegia das intempéries e dos ataques de animais, ocultando-se nas cavernas, e mais tarde nas cabanas, cujo interior lhe oferecia conforto e proteção contra os perigos do mundo externo. Ali, os materiais circundantes da natureza o mantinham abrigado e certo ele ficava de que os deuses estavam ao seu lado.
Hoje, abrigados em caixas de cimento sobrepostas dos arranha-céus ou em alongadas construções térreas, nós nos sentimos distantes dos ruídos e conflitos do espaço aberto que são as ruas, e nos entregamos ao devaneio dos sonhos que só a estrutura interna dos compartimentos íntimos possibilita pelo contato com os objetos familiares que nos rodeiam e acalmam as nossas tensões. Pode ser um simples toque na maciez da textura do sofá, no livro preferido ao alcance da mão no móvel mais próximo, no botão da TV ou do áudio que já retém o CD preferido e, assim, completa o desejo de distanciamento do mundo conturbado e inversamente me reconduz à solidão benéfica do passado e ao devaneio da caverna.

O trevo de quatro folhas


O paisagismo, idealizado ou não, é o que dá vida aos ambientes, o que envolve as construções dos homens e humaniza os espaços, tornando as agruras do dia a dia mais amenas. É tão bom olhar pelas janelas e sentir o cheirinho bom das plantas, perceber as cores que muitas vezes se mesclam num panorama nem sempre harmônico, nem sempre com uma rigidez geométrica, mas com uma graça peculiar.
Assim também as pessoas. Nem todas precisam ser iguais, nem todas têm de ter as mesmas medidas, ou a mesma cor dos cabelos ou dos olhos. Cada uma tem a sua singularidade, o seu diferencial, o seu charme. A beleza nunca teve, e nem pode ter, regras fixas. Ela sempre se mostrou mutante no tempo e no espaço. A diferença, hoje, é que a mídia busca impor padrões de comportamento e aparência, o que confunde a cabecinha em especial dos mais jovens e dos mais inseguros.
O que fazer, então, se não há compatibilidade entre o eu (o que eu sou e o que eu gosto) e o modelo predeterminado? Esquecê-lo é o melhor a fazer. Esquecê-lo sim, assumir a sua personalidade e seguir o seu caminho, ainda que ele seja apenas uma vereda. E nessa vereda buscar se destacar com a sua marca pessoal, que no final é o que importa mesmo. É preciso lembrar que em um verdejante jardim o que ressalta mesmo é uma florzinha rosa entre o emaranhado de folhas. Os trevos são todos similares, mas um que apresente quatro folhas atrai e retém o nosso olhar por mais tempo. Por que seguir as multidões se elas fundem as faces e, assim, anulam as identidades?
Ser diferente não significa ser melhor ou pior, mas se queremos proteger a nossa individualidade e nos revelar como somos, ou agir conforme nossos valores ou a nossa criatividade, temos de andar na contramão, nos desligar do entorno e nos voltar para a nossa interioridade. É ali que encontraremos o roteiro a seguir e as ferramentas sensíveis para desenvolver os projetos de vida, de postura e de representação da realidade.   
Se assim não fosse, não teríamos os grandes gênios da ciência, da filosofia e das artes, de todas as artes, porque estes jamais seguiram os passos de seus antecessores. Não obedeceram a dogmas, foram diferentes e puderam dessa forma fazer grandes descobertas, indicar novos caminhos e outras possibilidades de reflexão ou de devaneio.
Quem não conhece Picasso e a geometrização de sua obra, em especial das formas femininas? Ou a irreverência do nosso Flávio de Carvalho que andou pelas principais ruas de São Paulo, em 1956, com um traje masculino de saias para provocar a multidão e levá-la a refletir sobre a rigidez e a mesmice da moda masculina, se colocada em paralelo com a feminina. E um pouco mais próximo de nós, no espaço da política, quando um candidato, devido ao tempo exíguo para se apresentar na TV, apenas “mostrou a sua cara” seguida de um grito: “Meu nome é Enéias!” e ganhou as eleições. São tantos os exemplos...
Mas o que poderia ficar registrado em nossa mente é que seguir a onda quase sempre não é a melhor opção porque é a anulação do eu como ser pensante e criativo. A ousadia, entretanto, é um ato de escolha e de coragem, e para poucos, mas às vezes é melhor ser um trevo diferente no jardim a se confundir com a vegetação local.  



Entre patas e pelos

Sou meio suspeita para falar de animais porque gosto muito deles, mas hoje resolvi abrir as cortinas de meu espaço para contar algumas aventuras felinas. Tenho três gatos fofinhos e sei que muitos leitores irão franzir o nariz porque dizem gostar só de cães e que os gatos apenas se apegam à casa e não aos donos. Bobagem! Esses nada entendem dos peludinhos de quatro patas e não sabem o quanto estão perdendo por mantê-los afastados de si. Vamos aos fatos. 
Numa tarde em que o sol ainda permanecia aquecendo tudo e brilhando sobre a cidade, abri a janela de meu quarto e sobre a cobertura da garagem, protegidos por uma imensa primavera florida como um tapete cor de rosa, lá estavam eles: os gatinhos. Eram quatro e eu não sabia. Vi apenas dois olhinhos muito amarelos como o sol daquela tarde, lindos, lindos, que me fitavam fixamente. Levei um susto gostoso.  Alguém sabe o que é um susto gostoso? É quando, depois da surpresa, vem o deleite. Olhei para aquelas duas esferas douradas e elas continuaram a me fitar. Um diálogo mudo do olhar de espanto. Quem é você? O que você faz aí? Em poucos minutos eles ganharam casa, comida e carinho. E começaram as exigências.
 Água para Kelly, só corrente na torneira. Nada de água parada em vasilhas. E isso nos deliciava, porque percebemos que seu QI era elevado. Não era uma gatinha qualquer. Não era bobinha, não. Que orgulho! Para Amarelo (o nome, é claro, se colou à cor), eram importantes as saídas à noite até altas horas e só retornava quando o chamado por assobio era da pessoa certa, de quem ele mais gostava: meu marido. E o poderoso chefão da casa subia os degraus com seu dono e ia dormir ao seu lado na cama. Um aquecia o outro. Alguém reclamava? É óbvio que não. Ambos respiravam tranquilos até o amanhecer.
Ao anoitecer, não sei bem o porquê, todos corriam pela casa, fingindo um “pega pega”. Era divertido vê-los brincando, assim, seriamente. E ríamos com as cenas. Às vezes, na correria, quebravam alguma peça que enfeitava os móveis e eu ficava muito triste, mas ao vê-los assustados, como se entendessem que a brincadeira extrapolara os limites, sentia pena deles e pensava: fazer o quê? tudo nesta vida tem  um fim mesmo...
Os outros dois, Cris e Michelet, eram dóceis e caseiros e mal nos sentávamos no sofá para conversar ou ver um programa de TV e eles, ronronando, ronronando, se aproximavam devagar e se acomodavam em nosso colo e ali ficavam esperando pelos cafunés que pouco a pouco iam automaticamente recebendo, mas estavam atentos a tudo no entorno. Um dia, logo de manhã, houve um princípio de incêndio na área de serviço de uma casa vizinha.  Cris e Michelet, então, pararam diante da porta do quarto, em frente à janela que dava para essa parte da casa e, assustados, não se moviam nem desviavam o olhar da cena externa. Achamos estranho e fomos verificar. Vimos a fumaça. Os bombeiros atenderam de forma rápida ao nosso chamado e os vizinhos ficaram gratos aos fofinhos quando souberam quem detectara o perigo, além de evitar um prejuízo maior e mais grave porque toda a família ainda estava dormindo quando tudo aconteceu.
Hoje, estamos em um apartamento. Trouxemos os gatinhos, é claro. Mas só vieram três porque a Cris não resistiu a um ataque cardíaco e ficou no jardim de nossa casa antiga, junto dos outros nossos animais de estimação que, por longos anos, deram motivação às nossas atividades e alegria ao nosso viver, em especial nos momentos de solidão que nós, seres humanos, assim como os animais, encontramos imensa dificuldade para superar. E estamos todos aqui, e em harmonia. Eles não miam e não querem ir embora. Querem a nossa presença e enquanto um dorme na cama o outro escolhe o sofá e nós, que os acolhemos, nos acomodamos junto deles e também nos sentimos “em casa”.


Poemas a torto e a direito



O tempo
Tudo é fugaz
Tudo se desfaz
Ele lá
Na política:
A anomia

Na população:
A anemia

No futuro:
O fim da democracia

O poema ébrio
Faço
Refaço
Desfaço

A sintaxe se contorce
O sentido emudece
Era uma vez um poema.

Nas mãos

Nas mãos o toque

A alegria do sentir
O calor do aconchego
A maciez das palavras
A certeza do sim

Nas mãos o vazio

Os sons emudecidos
Os instantes se diluindo
As lembranças pulsando
Nas janelas de vidro



C’est  la vie
O percurso
 em barco bêbado
oscila
Mas La nave va
Devagar...devagar...
Em volutas no Mar sem fim

Natal

Brilhos
Pacotes
Laços e abraços
Na cabeceira da mesa
Alguém espera
Em vão
O milagre da ressurreição.


Entressons

Para ouvidos delicados
A música não é suave
Para seres conscientes
São tempos de turbulência
Entre os sons do presente
E a violência futura
Afago meu sonho de felino
E procuro um filete de sol

Desejos
Um sol mais ameno
Um céu de brigadeiro
Um convite ao laissez-faire
E também ao devaneio

Sensações

Os sonhos
os espaços
os vazios
Uma vida secreta
de burburinhos de solidão
Odores fugazes
sabores longínquos
Tudo se mescla
tudo se refaz
na fina teia proustiana do sentir


Desistência
Esquecer os nomes
Esquecer o verbo
Esquecer os medos
Vagar sem fim

Esquecer os lugares
O aqui e o agora
Os momentos vividos
Os sonhos de outrora

Fechar as janelas
Esquecer-me de mim

Rosas Urbanas
(Para exposição de fotografias de Célia Melo)

Amarelo
Duelo intenso entre
sol  e asfalto
Espelhos

Vermelho rosa
Rosa vermelho
Cor pendular entre
formas e gritos

Pétalas
Sonhos centrífugos
Aveludados
Reencontros

O mar
(Para Edilamar Galvão pelo poema escrito para Omar Khouri)

O mar é sempre imensidão
Nas ondas do verbo
Nos traços do verso
O resto é prosa miúda


Os outros

“Não desenho roupas, crio sonhos”
disse Ralph Lauren;
“Cozinhar não é química, é arte”
disse Marcel Boulet;
Não faço poemas, mas gostaria,
fundindo química, arte e sonhos,
como eles.




O Natal de Mirela

Era de estrutura delicada. Sensível e curiosa, mas com uma curiosidade voltada para dentro. Perguntava pouco. Observava muito. Tateando o mundo atentamente com suas verdes pupilas de apenas cinco aninhos, Mirela olhava deslumbrada o prata e o dourado das lâmpadas brilhantes que pulsavam nas ruas e nas fachadas das casas e dos edifícios. Lindo! Lindo! As cores verde e vermelha se somavam às tonalidades metálicas para caracterizar figurativamente a chegada do Natal. As árvores cheinhas de presentes e, é claro, o Papai Noel.
Com um sorriso só anunciado, quase imperceptível, parecia balbuciar segredos para a brisa da noite que ia chegando..., chegando..., sem pressa, em meio ao início de nosso verão. O carro, porém, deslizava macio e veloz, e as imagens se mostravam apressadas e trêmulas pelo retângulo vítreo da janela. Outros veículos iam ficando para trás, mas ainda deixavam no ar os sons de “NooiiitiFelizz...NooiiitiFelizz...”. Sabia que a avó os esperava e que naquela sala tão ampla e bonita os presentes junto da árvore seriam abertos depois da ceia, numa alegria ruidosa. Trouxe o presente da vovó, mamãe?  A mãe não a ouviu. Consultava mais uma vez o espelho e o marido, preocupada com o penteado que naquela tarde não fora feito pelo cabeleireiro predileto. Logo hoje! Não está estranho, amor? Não, meu bem, você está linda! Muito linda! A maquiagem também está estranha. Estou nervosa. Trouxe o presente da vovó, mamãe? Mas sua voz se mesclou à fala do pai na tentativa de afastar a angústia da esposa quanto ao visual. Calou-se a menina e olhou para o céu estrelado dos prédios, mas em silêncio murmurou Mamãe é tão linda! E, simultaneamente, visualizou a imagem da Tia Celeste, mãe de Vivi, uma amiguinha da escola. E, assim, do nada, deu um longo suspiro.
O carro estacionou na garagem da vovó Helena, junto de outros da família. Vieram todos para abraçá-los, enquanto a empregada que viera com eles retirava os pacotes. E o presente da vovó, mamãe?  A mãe se tornou pálida, começou a gaguejar, mas o marido a socorreu, de imediato. Eu o coloquei no carro, sim, querida. Veja! E mostrou a embalagem delicada de uma loja da Oscar Freire. Abraçados, e agora felizes na sala bem decorada com guirlandas, bolas de cores vibrantes e outros enfeites natalinos, começaram a acomodar os novos pacotes de tamanhos, formas e estampas diferenciadas. O tio, o fotógrafo amador da família, quis registrar o momento. Escolheu cenários, reuniu grupos, sugeriu poses. No momento de fotografar Mirela, colocou-a em um sofá ao lado da mãe e pediu a ela que arrumasse o vestidinho rosa e todo bordado da garota. Mas a mãe, ainda muito perturbada pelo penteado e a maquiagem, perguntou se aquele ângulo de seu rosto seria mesmo o melhor? Retomou a questão do penteado. O tio fotógrafo mudou a câmera de posição. Ela quis se ver uma vez mais ao espelho e retocar a maquiagem antes da foto que eternizaria aquele instante, aquela imagem. A avó, então, se aproximou de Mirela e, afagando carinhosamente seu pequeno rosto, sussurrou-lhe: Por que essa carinha triste, meu anjo? Hoje é Natal. Papai Noel já trouxe o seu presente. E que presente! E você está tão linda nesse vestidinho rosa! Tão linda como sua mãe. Os mesmos olhos!  Veja sua mãe. Ela já está voltando e sorrindo. Veja como está bonita! Você não acha? Acho, sim, vovó. Mas, então, por que essa tristeza? O que aconteceu? A garota olhou para o chão e quase em segredo confessou. Sabe, vovó, eu queria que o Papai Noel me desse, hoje, um outro presente. Qual? perguntou a avó com ternura. A mamãe com outra cara. Como, meu bem?  Queria, sim, a mamãe com mais cara de mãe. Igualzinha a mãe da Vivi.
Na foto, a mãe ficara lindíssima, mas o vestido de Mirela...Que pena! Estava com a barra dobrada.