O devaneio da cabana

Como é bom voltar para casa! Após um dia exaustivo de tensão no trabalho, de horas intermináveis no assento do carro, pelo crescente congestionamento, ou mesmo no assento do avião, entre as nuvens e as revistas de bordo, a sensação é quase indescritível. É bom retornar ao espaço do nosso universo particular. Seja ele de amplos e envidraçados compartimentos; seja ele de pequenas e aconchegantes dimensões. É o nosso refúgio.  
E ali, entre os objetos que são uma extensão de nós, e que os reconhecemos até na ausência da luz, construímos a nossa fortaleza para enfrentar os demônios que nos afligem: os relatórios que temos de apresentar e estão inacabados; as orientações dos especialistas para melhorar o nosso desempenho profissional, e que ainda não assimilamos; os projetos de vida continuamente adiados, mas que exigem a nossa atenção. Enfim, todos os pequenos e grandes problemas que arranham diuturnamente a nossa máquina cerebral.  Mas ali tudo parece adquirir uma configuração do possível, ou da acomodação, pela sensação singular de estar em casa, de estar seguro.
E essa sensação de segurança é ancestral, nos remete ao homem primitivo, que se protegia das intempéries e dos ataques de animais, ocultando-se nas cavernas, e mais tarde nas cabanas, cujo interior lhe oferecia conforto e proteção contra os perigos do mundo externo. Ali, os materiais circundantes da natureza o mantinham abrigado e certo ele ficava de que os deuses estavam ao seu lado.
Hoje, abrigados em caixas de cimento sobrepostas dos arranha-céus ou em alongadas construções térreas, nós nos sentimos distantes dos ruídos e conflitos do espaço aberto que são as ruas, e nos entregamos ao devaneio dos sonhos que só a estrutura interna dos compartimentos íntimos possibilita pelo contato com os objetos familiares que nos rodeiam e acalmam as nossas tensões. Pode ser um simples toque na maciez da textura do sofá, no livro preferido ao alcance da mão no móvel mais próximo, no botão da TV ou do áudio que já retém o CD preferido e, assim, completa o desejo de distanciamento do mundo conturbado e inversamente me reconduz à solidão benéfica do passado e ao devaneio da caverna.

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