As marcas de uma cultura

Abri o jornal. Um mar de palavras inundou os meus olhos. Tinha consciência de que ali estavam todas as informações de que necessitava: programação teatral, de cinema, de espetáculos de dança, de esportes, de política... O alfabeto era cirílico e, por isso, todas as letras pareciam tremer ao toque de minhas mãos e, num movimento brusco, fechei-o imediatamente. Levantei-me do sofá e tensa caminhei até a porta. Dia nublado. Frio. De três a quatro graus negativos era a previsão. Era quase outono. O cachecol aquecia-me o pescoço e o peito. Com o casaco grosso e pesado, resistiria, sim, à baixa temperatura. Esperara tanto por isso e era minha primeira manhã em Moscou.
Acordara cedo demais. Os outros ainda dormiam. Fiquei olhando o vaivém das pessoas do lado de fora pela porta de vidro. Limitavam-se elas a manchas escuras semoventes que se cruzavam ou seguiam paralelas e logo desapareciam de meu campo de visão. Internamente, as vozes se mesclavam, mas meus ouvidos quase não distinguiam os sons. Resolvi então tomar meu café. Quanta variedade! Coloquei sem pressa os pãezinhos, geleias e biscoitos mais atraentes em meu prato. Enchi as xícaras com café e leite. O copo de suco. Laranja ou pêssego? Laranja. As frutas. Acomodei-me em minha confortável cadeira e comecei pelo suco.
Olhava em torno os prédios antigos e austeros, e dali visualizava os símbolos que por tanto tempo alimentaram os meus sonhos no passado. As formas ainda mexiam com as minhas lembranças, mas não eram as mesmas, e o vermelho já não tinha o significado de antes. Perdera a sua força, a sua importância, o seu valor. Ouvi um “Bom dia!”. Os outros haviam acordado. Viajar em grupo tem seus pontos positivos e outros nem tanto.
Dentro do ônibus, o guia ia descrevendo a cidade, os monumentos, as igrejas. A arte estava por toda parte. No exterior das igrejas, pelas cúpulas coloridas; no seu interior, pelos ícones sagrados. Nos museus, pela quantidade e qualidade das obras raras. Nas estações de trem e de metrô, pelas esculturas e arte pictórica. Nas ruas, pela amplidão de suas praças e avenidas. Era um mundo singular. Era a Rússia dos antigos czares, da ideologia marxista que motivou Lenin à Revolução de Outubro, em 1917. Mas foi também o fim dessa “fábrica de sonhos de igualdade”, pelo autoritarismo sanguinário de Stalin.
Mas nessa história, embora tenha passado tantos anos após a Perestroika, o guia não tocava. É que o medo ainda se mostrava muito presente nessa cultura que viveu mais de setenta anos sob o duro regime soviético, sob o símbolo da foice e do martelo. Se a ele perguntássemos algo sobre o regime, de imediato “perdia” a compreensão da língua estrangeira e continuava o seu discurso com se um ventríloquo fosse: “Aqui, na Praça Vermelha, do lado direito temos o Kremlin...”
É, não é fácil esquecer o passado, não, porque “ninguém se livra de seus fantasmas”.

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