O esforço e o sucesso


O que não falta em nosso país são comemorações. E a Avenida Paulista, em São Paulo, é a escolhida para esses eventos. Já escrevi sobre isso em um número antigo da Revista Facom.   É uma faceta conhecida, aqui e lá fora, de que somos um povo feliz e com características positivas. Basta observarmos a forma como recebemos os “diferentes” e aí se incluem as raças, os estrangeiros em especial. Com eles nos relacionamos de forma harmônica, o que nos coloca acima dos europeus, principalmente os franceses, que praticam explicitamente a xenofobia e perseguem como se praga fossem os que vêm de fora. Aqui, o estrangeiro é sempre bem-vindo. Um exemplo são os japoneses que, como outros que os antecederam, se sentiram em casa. E aqui criaram raízes.

Em nosso espaço, os japoneses se instalaram há mais de cem anos. Chegaram em 1908 e logo se adaptaram (com esforço, é óbvio) às diferenças culturais e linguísticas. E o centenário dessa imigração foi comemorado com muita festa em nossa cidade, em especial no bairro da Liberdade onde reside a maior parcela desses orientais. Eles mesclaram-se efetiva e afetivamente com os brasileiros, e muito contribuíram para o nosso desenvolvimento, não só na agricultura, mas também em outras áreas, como as ciências exatas, biológicas, políticas e, principalmente, nas artes. Os nomes de Tomie Ohtake e Manabu Mabe, para citar alguns, que, com a singularidade do traço abstrato e da cor vibrante, enriquecem o tão exigente cenário artístico, e assim reforçam a nossa tese. Podemos dizer, até sem trocadilho, que os japoneses deram uma outra cara para o Brasil.

Naquele ano, 2008, também foram lembrados (embora sem muito alarde, sem muitas comemorações) os cem anos da morte de Machado de Assis. Uma das figuras mais envolventes de nossa literatura. Quem não conhece sua obra não sabe o que está perdendo. Machado, com sua ironia sutil e seu olhar de felino esperto, dissecou a alma humana, mesmo antes de Freud expor suas teorias, hoje tão conhecidas e exploradas não só pelos especialistas do assunto, mas pelos outros, os leigos que, mesmo nunca tendo percorrido nenhuma página de suas publicações, mas diante de situações paradoxais, e para revelar talvez uma falsa cultura, repetem à exaustão “Freud explica”.

Mas Machado de Assis continua nos ensinando a ler o mundo e as mazelas humanas, seja em seus romances, seja em seus contos. Quanto mais releio Dom Casmurro mais me certifico de que Capitu é, sem dúvida, a personagem feminina mais bem delineada e melhor engendrada para aquela trama em nossa literatura, e de que o conto “O espelho” é o que com maior nitidez revela o nosso desejo, consciente ou inconsciente, de produzir uma outra imagem de nós para o outro e de vivermos em função dessa imagem que fabricamos.

Vivemos hoje a realidade da imagem, da projeção idealizada e, consequentemente, a do distanciamento do eu, da perda da identidade e, com essa postura, assumimos a nossa alienação. E Machado, lá atrás, há mais de um século já havia vislumbrado esse cenário e o registrado, ali, em sua literatura com a transformação de Jacobina em alferes da Guarda Nacional. Jacobina trocou um nome por um título, uma indumentária comum por uma farda. Revelou Machado, com essa narrativa, sua percepção perspicaz das fraquezas humanas e o fez apoiando-se apenas no léxico, nas palavras.

São as astúcias de um escritor nascido pobre e quase preto. Porque era mulato o nosso Machado. E órfão. Que sina! Órfão e mulato. E nasceu na era da escravidão. Tinha tudo para não dar certo. Para ser “gauche” na vida, diria Drummond. Para mergulhar na ignorância. Não frequentou escolas e aprendeu tudo que hoje nos ensina com muito, muito esforço, e a ajuda de algumas pessoas que dele se apiedaram. Conheceu o alfabeto e a gramática, além de outras línguas, e com essas ferramentas delicadas conquistou o mundo e se fez mestre na arte da escrita e da ficção.

O que diria Machado, me pergunto, se vivo ainda fosse e convivesse com as reclamações contínuas, hoje, de que as pessoas não aprendem porque são pobres, não tiveram oportunidades na vida, não pertencem às classes elitizadas, ou as escolas não são eficientes. Ou, ainda, a justificativa que está na moda: não se expressam bem porque a nossa língua é muito difícil e, agora, com a recente reforma ortográfica, “tudo ficou ainda mais complicado”, dizem eles. Sartre ao afirmar: “O inferno são os outros”, parecia conhecer a mente dos nossos jovens que jogam sempre para o outro a responsabilidade de suas falhas ou de sua preguiça diante do estudo. Ah! Esses jovens!


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