À espera de Ulisses



A leitura dos clássicos é sempre atual, daí a sua classificação. Obras como a Odisseia, de Homero, não caem no esquecimento porque estão fortemente inseridas na memória coletiva, fazem parte de todo um imaginário que nos serviu de modelo na esfera dos valores humanos. A heroicidade do personagem Ulisses, a fidelidade de Penélope, a servidão incondicional das criadas nos comovem e fortalecem os princípios da ética e da moral.

Contudo, há dúvidas quanto à existência do tão famoso autor grego Homero, a quem também cabe a autoria da não menos clássica obra a Ilíada. Obra essa que inicia a mais conhecida narrativa épica ocidental: a Guerra de Troia, travada pelo rapto da bela Helena, esposa do rei Menelau, de Esparta. Não temos dados científicos comprobatórios de sua história de vida. Conhecemos, sim, a saga de Ulisses, seu personagem e rei de Ítaca, que em sua viagem pelos mares bravios, enfrentou incontáveis perigos e só retornou à sua cidade, para reconquistá-la, dez anos após sua partida. Chegou disfarçado de mendigo e, apesar da farsa por ele encenada para driblar os pretendentes à mão de sua esposa Penélope que se amontoavam pelo palácio, no aguardo da escolha da desejada musa, só foi reconhecido pela escrava ao lavar os seus empoeirados pés pelo longo trajeto de volta, ao deparar-se com a cicatriz em sua perna.

Mergulhamos nessas envolventes narrativas épicas desde muito cedo não só pela literatura, mas hoje também pelo cinema e outras mídias, mas desde a antiguidade se procura, sem sucesso, uma biografia de Homero. Isso, contudo, é uma questão menor e não é única, pois outros relatos fabulosos também prescindem de uma autoria confirmada e vão se perpetuando pelos séculos e até milênios ad infinitum. O que nos interessa mesmo é o teor dessas narrativas míticas que surgiram no mundo da oralidade e passam de geração a geração porque aceitas coletivamente, sem questionamentos de autoria ou veracidade. É que elas estão intrinsecamente relacionadas à nossa vida e à nossa história, ao nosso desejo de justiça, de vencer obstáculos e de chegar à vitória, independentemente de sua dimensão e sua repercussão.

Dentro de nós existe sempre o desejo de fazer a luta valer a pena, seja ela em que direção for: seja na superação de um obstáculo, na busca de um emprego, na realização de um trabalho qualquer. Parece ser isso também o que dá sentido à vida. Daí a nossa frustração diante dos insucessos. Daí o nosso medo também de não saber responder aos enigmas que nos propõem as esfinges do mundo contemporâneo. Esfinges no plural, sim, porque elas se globalizaram também. Estão elas em toda parte, materializadas na estrutura de nossa sociedade e nos devorarão sem piedade se não soubermos decifrar em tempo hábil as mensagens sub-reptícias que permeiam seu discurso.

Os meios de comunicação se multiplicaram, mas alguns se babelizaram, outros se subordinaram a governos inescrupulosos, e nos sentimos à deriva. Quem está do nosso lado e quem está contra nós? Quem busca abrir nossos olhos e quem deseja ofuscar nossa visão? Não sabemos mais. Mas quem nos condena a impostos cada vez mais altos, sem retorno, e amplia o Estado com um contingente cada vez maior de “inexplicáveis assessores” pensa ou não no nosso futuro? E quem oferece financiamentos alongadíssimos a juros impagáveis porque altíssimos para a aquisição da casa própria quer o nosso bem ou o nosso voto? Para muitos, essas atitudes são um enigma de difícil decodificação; para outros, nem tanto.

A razão é que muitos se vêem na narrativa fabulosa da Odisseia, no barco de Ulisses, diante do canto da feiticeira Circe e sabem que se ouvirem o seu canto, se se deixarem seduzir por ele, serão por ela dizimados e não mais retornarão à Ítaca, pois serão desumanizados, transformados em porcos como na história mítica. Por isso, é preciso fazer como Ulisses que procurou tapar os ouvidos de seus argonautas com cera para não se deixarem enfeitiçar por Circe e, assim, tocar o barco para a frente. E, ainda, seguindo o exemplo do herói grego, amarrar-se fortemente ao barco para apesar da voz maviosa que vem da ilha da fantasia, não se deixar levar pelo seu canto enganador e através de estratégias dignas de uma verdadeira aventura homérica, ter como objetivo calar esse som e resgatar essa ilha. Conseguiremos isso? O tempo dirá.


Texto publicado em 2007, no Jornal O avaiense. E ele continua atual em 2012.

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