Não dá para esquecer


Gosto de conhecer o que pensam os jovens, como veem o mundo e como o retratam por meio da linguagem. Qual é o seu estilo e o quanto são capazes de ludicamente jogar com as palavras para produzir imagens que só mesmo eles, no contexto em que vivem, podem projetá-las para nós que pertencemos a um outro universo e a uma outra geração.

“Não dá para esquecer” foi o tema dado em sala, neste setembro de 2015, para meus alunos de 1º. Semestre do Curso de Comunicação. Alguns, atemorizados e pouco familiarizados com o espaço da folha em branco, e tendo que preenchê-la com fatos tirados da memória ou da imaginação, angustiam-se por não ter ideia de como dar início a essa (hoje) estranha atividade. Outros, menos preocupados, escrevem sobre a primeira lembrança que lhes vêm à mente e rapidamente entregam seu relato, nem sempre imagético, desculpando-se pela falta de “inspiração” nesse dia, ou jurando que o fato é totalmente verídico. Outros, demoram um pouco mais. Acho que selecionam ideias, imagens, e só, então, começam a redigir.

Foi o que aconteceu com o aluno João Pedro no último sábado. Após a minha proposta, ele ficou em silêncio por alguns instantes. Depois, começou a caminhar pela sala e, por fim, sentou-se. Com a caneta que corria inquieta pela página, ele rapidamente redigiu o surpreendente texto a seguir:

“Amanda”

Maquio defuntos. E me esqueço de todos os rostos gelados. Menos o dela, o de Amanda, 24 anos, linda e morta. Cabelos castanhos com pontas loiras quase brancas. Conheceu-me com um vestido de flor encharcada de lágrimas paternas. Suas cicatrizes transcorriam por seu pescoço até achar a bochecha esquerda. Precisou apenas de um pouco de base para ficar apresentável aos entes queridos. E não a esqueço por ser algum tipo de poeta ultrarromântico que simpatiza com cadáveres. Não a esqueço, pois de seu nariz escorria um cadarço amarelo, e nele estava escrito “eternize sua juventude”. Seu cadarço sujo com sangue seco hoje me serve de colar. Amanda, linda, jovem e morta.

(João Pedro Albuquerque)

Não é sedutor?! Quanta criatividade!!! Não dá mesmo para esquecer. Esse menino promete!

2 comentários:

  1. Aproveito para, no dia de hoje, dia do Professor, cumprimentar a Prof. Neiva e estender a todos os professores que dedicam a sua vida ao ensino, com toda a paixão e sabedoria.
    Obrigada por compartilhares este texto conosco, "não dá mesmo para esquecer", pois faz-nos ver, e acreditar, que ainda existem jovens com potenciais capacidades para levar este Brasil a avante. Que o Brasil tem futuro, apesar dos dias cinzentos que se vivem. A esperança nunca morre, em especial, enquanto houverem professores despertando e valorizando os alunos. E, aos alunos, deixo a mensagem para que, como abelha ou escaravelho, tratem os vossos professores como uma flor:
    "Não sou como a abelha saqueadora que vai sugar o mel de uma flor, e depois de outra flor. Sou como o negro escaravelho que se enclausura no seio de uma única rosa e vive nela até que ela feche as pétalas sobre ele; e abafado neste aperto supremo, morre entre os braços da flor que elegeu. - Roger Martin du Gard
    Maria da Graça Reis

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  2. Obrigada, Graça, por sua mensagem tão carinhosa e tão delicada! E que, com ela,só agora me deparei.
    É realmente um privilégio ter uma amiga como você que, mesmo à distância, é uma presença contínua em minha trajetória.

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