Uma crônica para não se colocar defeito


Não sou leitora das obras de Luis Fernando Verissimo, conhecidíssimo mestre do humor. E também, sem muita sutileza, um defensor da ideologia de esquerda. Gosto mesmo é das obras do pai, um ficcionista menos conhecido pelos jovens, hoje, mas capaz de me transportar para outros recantos e me surpreender, ou me seduzir, com histórias tecidas na busca de desvelar a condição humana, tendo como suporte o fio da literariedade. Érico Veríssimo, o pai, foi quem preencheu os vazios de minha adolescência, com seus textos e encantou uma geração, a minha, com a obra Olhai os lírios do campo.

Hoje, porém, ao abrir o Estadão, li o título da crônica de Verissimo: “Dois destinos”. E depois da primeira linha seria impossível não ir até o fim. Vi nesse texto os rastros do pai com um texto que se constitui, pensando em Barthes, uma escritura. Lindo, poético e humano! E nele a crítica social, já previsível, que evidencia sua ideologia. Achei que deveria compartilhá-la com os que me leem. Abaixo, a crônica:"Dois destinos".

“Você nasceu num vilarejo da África Equatorial. Não importa o seu nome, você é uma entre milhares. Além das outras desgraças, você nasceu mulher. Sobreviver ao parto já foi uma vitória sobre as estatísticas. Chegar viva à sua idade sem sofrer qualquer tipo de mutilação foi um milagre. Sua mãe morreu de uma epidemia, você mal a conheceu. Seu pai você nunca soube quem foi. E seu destino está fixado nas estrelas.

Deve haver uma palavra na sua língua para “destino”. Talvez seja a mesma palavra para “danação”. Sua biografia já foi decidida, antes de você nascer. Quem a decidiu você também nunca soube quem foi.

Seu destino está fixado nas estrelas – mas as estrelas se movem. Não estão fixadas no mesmo lugar todas as noites. E algumas fogem. Você vê os riscos que deixam no céu as estrelas que fogem. E você decide fugir também. Fugir do seu destino. Fugir da danação É pouco provável que exista o termo “livre-arbítrio” na sua língua. Você o descobre em você. Você inventa sua própria liberdade.

E você foge da sua biografia. Com outros do seu vilarejo, caminha para o Norte, para o Mediterrâneo. Não morre no caminho – outro milagre! Não morre sufocada no barco abarrotado de fugitivos que atravessa o Mediterrâneo. Não morre afogada antes de chegar ao seu outro destino, o destino que você escolheu. E começar outra biografia.

Ou:

Você nasce numa cidade chamada Londres. Seu nome não só importa como é sujeito de uma especulação nacional, até ser escolhido. Sua mãe é linda, seu pai é rico e tem emprego garantido, sua foto provoca êxtases, você já é uma celebridade internacional. Ah, e um detalhe: você é a quarta na linha da sucessão ao trono da Inglaterra. Dependendo da disposição das estrelas, pode acabar rainha. Nada lhe faltará.
Mas, mesmo que queira, jamais poderá fugir da biografia que prepararam para você. Danação”

Luis Fernando Verissimo ( Jornal OESP 07/05/2015)

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