"Quem dorme com cão..."


 
 

Há muitos anos, num passado que vai ficando cada vez mais distante, assisti a um filme de cujo título e de cuja trama já não me lembro mais. Só o que me vem à mente de tempos em tempos, e em ocasiões específicas, é uma frase de uma personagem desse filme diante de uma situação de uma decepção atroz. Volto a repetir, dele nada mais me lembro, exceto dessa única frase: “Quem dorme com cão, amanhece com pulgas”.
 

Eu, muito jovem ainda, vivia em um espaço tão seguro, ou assim me parecia, e com ideais tão românticos de que nada de mal me aconteceria se eu nada fizesse de errado e só me relacionasse com pessoas boas e amigas. Isso hoje soa esquisito, eu sei, mas esse era o universo pelo qual eu circulava. Cidade pequena. Mundo fechado. Pessoas pacatas, muito conhecidas. E depois desse filme, e dessa frase que se colou em minha mente, tudo começou a mudar para mim.
 

Lembro-me de que nessa noite voltei para casa com uma sensação estranha de que o perigo nos rondava sim e de que mais dia menos dia podíamos cair em armadilhas, porque nem o mundo nem as pessoas eram tão confiáveis quanto imaginávamos. Algumas poderiam até nos trair e, por isso, era preciso estar em alerta contínuo.
 

Mas será que agimos sempre com essa cautela mesmo? Acho que não.
 

Lembro-me de que na faculdade me deparei com uma colega falante, extrovertida, e que frequentava minha casa, como se minha amiga fosse, mas que roubou minhas pesquisas e as apresentou na sala de aula para o professor e para a classe, e diante de mim e do meu espanto, com uma expressão de vitória porque sabia da minha timidez em denunciá-la e provocar uma situação conflituosa na sala. O meu silêncio foi para sempre. Nunca mais nos falamos. Segui minha carreira, mas a imagem dela seguiu comigo, sempre me lembrando de que é preciso cautela com alguns “amigos”.
 

Muitos anos depois, quando já havia concluído meu doutorado e participava de uma Banca de Mestrado em uma instituição, aqui em São Paulo, nos encontramos. Ela pretendia iniciar o mestrado ali, mas ao me ver ficou muito constrangida. E com receio de vir a ser minha aluna, eu soube depois, mudou de ideia. Foi engraçado porque eu nem professora era dessa instituição. Fui apenas convidada nessa data, como em outras vezes, para participar de uma Banca. O destino às vezes se vinga por nós, mas só às vezes. E nesses casos nos sentimos recompensados. Eu me senti, sinceramente.
 

Há também experiências mais trágicas profissionais e mesmo familiares, mas quem não as tem? E com pessoas que jamais suporíamos que nos trairiam após ajudá-las até por longos períodos? A literatura está sempre nos revelando esses tristes episódios que marcam negativamente alguns períodos na vida dos personagens e que, muitas vezes, se repetem em nossa própria passagem por aqui. Mas nem sempre podemos evitar. E a razão é simples: os cães (metafóricos) existem e nós, por razões várias, não percebemos e deles nos aproximamos e só vamos sentir as pulgas depois de elas nos picarem. E aí... poderemos reagir ou ignorar, mas a imagem desse alguém jamais voltará a ser o que era antes. Ela se tornará apenas um borrão, e nada mais.
 

As minhas desculpas aos cãezinhos de verdade que merecem todo o nosso carinho porque eles nunca nos traem; eles realmente nos amam, assim como nós a eles.

11 comentários:

  1. Fiquei com a pulga atrás da orelha... sábios momentos de reflexão e oportunos. Aos fiéis amigos, com carinho.

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  2. Graça, há amigos e "amigos". Com estes últimos, é melhor manter a pulga atrás da orelha mesmo. Beijos

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  3. Pois é, minha linda...a vida está lotada de pulgas... mas eu já tomei vacina contra elas faz tempo... Ai, que a inveja mata, né?
    Um abraço beeeem grande de saudade.

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    1. Menina esperta! Eu, infelizmente, continuo desconhecendo a vacina ou o meu QI é insignificante mesmo para detectar tal ameaça. Só rindo. Bjs

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  4. Vou te responder também com uma celebre frase que me acompanha depois que descobri as pulgas: "nossas atitudes tem a dinâmica de um "bumerangue"

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  5. Que isso seja verdadeiro, mas tenho algumas dúvidas. Há pessoas muito espertas capazes de alterar até a direção dos ventos. Beijos e obrigada.

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  6. No meu caso a pulga que me picou pertencia a José Dirceu...Em 1965, numa assembléia no Sedes Sapientiae, José Dirceu da PUC tentava convencer as estudantes de nossa faculdade ( só mulheres ! isso existia sim!) de começarmos uma greve geral já para o dia seguinte, contra o quê já nem me lembro. No meio da assembléia, eu , bem ingenuamente, levantei a mão e perguntei: será que não dá para mudar a data, pois amanhã minha classe tem uma prova bem ferrada ? ah...bobinha que eu era...Dirceu ficou me olhando em silencio, e de repente estourou numa gargalhada, seguido por toda a platéia! E disse as seguintes palavras que se colaqram na minha mente para sempre: "Eis aqui um exemplo de cérebro de ameba, uma porca chauvinista, burguesinha retrógrada!" E lá veio mais gargalhada! Saí correndo de lá, chorando. Mas graças a Dirceu, fiz minha escolha ideológica naquele momento: jurei nunca mais me aproximar de esquerdistas que pra mim não passavam de gente cínica, irônica e cruel...Graças a Dirceu amadureci, perdi a ingenuidade num záz, e hoje tenho o prazer de vê-lo entre as grades de uma prisão. Que mofe lá!

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  7. Excelente seu comentário, Mara! Sei que a experiência foi terrível e nos dias atuais certamente seria classificada como bulling, assédio moral, sei lá... Mas o que importa mesmo é que, hoje, você é reconhecida nos jornais, e entre pessoas esclarecidas, como uma grande defensora da democracia no país, enquanto ele surge em todas as mídias como "o grande líder" das páginas policiais. Bjs

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  8. Texto muito bem escrito em todos os sentidos. Quem de nós, algum dia, não "dormiu com cães..."? Obrigado, Neiva.

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  9. Sou eu quem agradece a sua visita e seu comentário. Isso me oferece estímulo para continuar a expor de forma séria ou lúdica o que acontece ou sinto no momento. O meu abraço.

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  10. Desconheço a autoria desta mensagem, mas meu blog tem outros objetivos wue não este.

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