Logo pela manhã, neste sábado de sol, uma notícia se
espalhou pela casa ao som da TV ligada. Carlos Heitor Cony se fora. Sua voz não
mais seria ouvida pela CBN. Apenas seus textos resistirão ao tempo e à sua
ausência física. Aos 91 anos de idade e de uma vida literária, jornalística e
política muito produtiva, ele deixa os leitores, os amigos e a família.
Cony foi um dos meus cronistas preferidos. Transformou
muitos dos fatos da vida cotidiana em prosa poética, como quando relatou, em
uma curta crônica, a sofrida perda de Mila, sua cachorrinha tão amada que o
acompanhara por 13 anos. Não tenho mais a crônica, mas me lembro da imagem
final quando ele a leva já sem vida nos braços como um bebê, o seu bebê, para
depositá-la sobre as ondas do mar, seu novo e definitivo lar. E as ondas não
apenas levaram Mila, mas também uma parte de si.
E o cronista Cony retoma anos depois essa cara lembrança da
relação afetiva entre o homem e o cão, entre Mila e ele, no Prefácio da obra Cão como nós do poeta português Manuel
Alegre que ali registra a perda de Kurika, “um épagneul bretão de manchas
castanhas” que acompanhava seu dono à praia, às caçadas e pescarias e que,
mesmo após sua morte parecia ali permanecer. E diz o poeta sobre Kurika:
“Sei que andas por aí, ouço os teus passos em certas noites,
quando me esqueço e fecho as portas começas a raspar devagarinho, às vezes
rosnas, posso jurar que já te ouvi a uivar, cá em casa dizem que é o vento, eu
sei que és tu, os cães também regressam, sei muito bem que andas por aí.”
E o Prefácio de Carlos Heitor Cony, para Cão como nós, assim se inicia:
“Ora, direis, um cão é um cão para sempre será um cão, nunca
será como nós. Mas podemos dividir a humanidade entre aqueles que amam os cães
e os entendem, e aqueles que não amam cães. Para entendê-los, é preciso
amá-los, como no caso de Olavo Bilac no soneto dedicado às estrelas “amai para
entendê-las”.
E depois de comentar a obra de Manuel Alegre, e os fortes
elos que uniam o poeta a seu cão, o cronista expõe o intenso carinho que
dedicou à Mila, e como ela preencheu os vazios de seu entorno e, assim, deu
sentido ao seu existir.
“Tal como Manuel Alegre, também fui seduzido pelo amor que
Mila me ofereceu durante 13 anos, fazendo-me um novo homem, encarando a vida de
forma menos amarga. Eu não a escolhi. Ela é que me escolheu como dono, dono da
chuva, do vento, do sol e da vida. Acima de tudo dono dela. No território da
emoção absoluta, ela entendia minhas palavras e meu silêncio, fazia-se entender
pelo olhar, pela expressão corporal, pelo suspiro que dava quando lhe fazia a
vontade de carinho e atenção.”
E assim finaliza seu Prefácio:
“Com a intensidade de um poeta que manipula instantes,
Manuel Alegre relembra Kurika em diversos flashes que formam o patrimônio afetivo
de quem é dono de um cão e, de certa forma, se torna servo do cão. Dispensando
palavras e gestos, os dois - cão e dono - se entendem principalmente naquilo
que não se sabe dizer".
Este é Cony. Aquele que se refugiava no ninho das palavras
para através delas, com amor ou furor, revelar tudo o que via e sentia do mundo.
Ai, esse Cony vai fazer falta...mas que bom que minha amiga Neiva o trouxe à baila com essa homenagem ao cãozinho fiel...Chorei...
ResponderExcluirA biografia dele, hoje, está em todas as mídias.E é invejável, sim. Mas o que sempre me impressionou foi que, com a mesma intensidade com que criticava os humanos, ele amava e defendia os animais. Isso nos sensibiliza,claro! Os homens se defendem, mas os pobrezinhos...
ExcluirObrigada Neiva por nos trazer um pouco de Cony com um texto tão poético. Descobri algo em comum nossa admiração por ele.
ResponderExcluirQue bom, Elenice! Mas acho que nossos pontos de similitude vão além da admiração por Cony. O que acho ótimo. Bjs
ResponderExcluirAmanhã...um dia... gostaria de ser lembrada como o Carlos Heitor Cony "... e sempre presente ausente", e é com humildade que reconheço que não tenho tal dimensão. A sua obra, como bem dizes resistirá ao tempo e à sua ausência física.Bjs.
ResponderExcluirHá diversas formas de lembranças. Pessoas há que se marcam pela arte, outras pelos grandes feitos e outras ainda pela comunhão de ideias ou afinidades, o que as tornam especiais para nós. Estas são uma presença constante, independente de tempo e distância. Conhece alguém assim? Eu conheço...
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirUm dia apresenta-me essa pessoa. Bjs.
ResponderExcluirCony é inesquecível. Obrigada por seu texto que reúne, com muita sensibilidade, todas as qualidades do escritor e do ser humano. Ele relatara, em algum momento, que terminou de escrever um de seus livros durante a agonia de Mila para permanecer junto dela... sua crônica fez-me lembrar de tamanho amor. Um beijo.
ResponderExcluirObrigada, Anna, por me ler e por suas palavras, sempre permeadas de carinho. E, se não estou equivocada, foi você quem me enviou a crônica de Cony sobre a perda de Mila. Me encantei pela crônica, falamos sobre ela, e a crônica ficou em alguma gavetinha de minha memória, sempre ligada a você. Um beijo agradecido.
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