Uma dedicatória para se guardar

O tempo em seu curso ininterrupto vai deixando rastros que a nossa memória congela. Alguns, mais à superfície, retornam com frequência; outros, parece que numa camada mais profunda, só vêm à tona quando estimulados por algum elemento a eles associado. E em outras vezes sem nenhuma justificativa plausível. São os mistérios da mente. Mas desde tenra idade os momentos vividos vão se somando...vão se somando...naqueles compartimentos flexíveis daquelas caixinhas de segredos tão nossas. E ali se eternizam.

Por isso, quem se envolve com o universo da linguagem tem sempre o que dizer e assim a literatura nunca se esgota. Há sempre novas passagens a serem retomadas pelos escritores que atentos a esses registros nos transportam para esses mundos, às vezes sombrios, às vezes de ingenuidade e magia. Gosto de autores que sabem como nos conduzir por essas veredas tão íntimas e e tão imprevisíveis, por meio de um registro estético contagiante, que nos permite visualizar as cenas descritas como se ali estivéssemos lado a lado, vivenciando tudo.

Há poucos dias, me dei de presente a obra Gaveta dos guardados, do artista plástico Iberê Camargo. Que delícia de leitura ele nos propicia com os seus "guardados", as lembranças da infância e adolescência. Ali, os seus medos, as suas agruras e, depois, as suas primeiras paixões de garoto (e as proibições, pela  pouca idade), suas experiências e seus sonhos. Fragmentos labirínticos de memórias em prosa poética sedutora. Na última  parte, a biografia do artista plástico internacionalmente reconhecido e premiado em que ele se tornou. Premiados também deveriam ser os seus escritos.

Da dedicatória da obra, aqui o breve e delicado texto poético de Iberê à Maria, sua amada.

"Depois (à Maria)

Quando eu estiver deitado na planície, indiferente às cores e às formas, tu deves te lembrar de mim. Aí, onde a planície ondula, a terra é mais fértil. Abre com a concha da tua mão uma pequenina cova e esconde nela a semente de uma árvore. Eu quero nascer nesta árvore, quero subir com os seus galhos até o beijo da luz. Depois, nos dias abrasados, tu virás procurar a sombra, que será fresca para ti. Então, no murmúrio das folhas eu te direi o que meu pobre coração de homem não soube dizer."

(Iberê Camargo)

Quem assim escreve, jamais será esquecido. Ficará, sim, na "gaveta dos guardados" de todas as Marias.





2 comentários:

  1. É mágico, que beleza de associação harmoniosa de palavras e imagens de sentimentos. IBERÊ CAMARGO deveria ter a sua obra em exposição permanente e itinerante, ser (re)visitada e a todo o momento sonharmos com a profusão de cores e imagens que despertam outros valores. Por favor, Neiva, vasculha a tua “gaveta dos guardados” e presenteia-nos com ritmos e imagens que nos tocam a parte mais profunda e emocional do nosso VIVER. Grata, beijos

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    1. Muito me alegra, Graça, que se tenha sentido envolvida pelas palavras do artista plástico, e também das letras, Iberê Camargo. Eu, como você, achei a sua "Dedicatória" muito delicada, muito humana. Por isso, me senti impelida a aqui reservar um espaço para ela. Bjs
      Quanto aos meus "guardados...

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