Resgates de fim de ano


É o momento de olhar para trás. De reviver cenas sublimes que o tempo em sua corrida veloz foi apagando de nossa memória, dia a dia, sem que tenhamos, hoje, consciência de quando essa erosão começou. Foi se apagando... Foi se apagando... Restam fragmentos de imagens. Restam frases nem sempre acabadas, nem sempre audíveis, nem sempre legíveis. Os instantes se foram. A s lembranças em meio à bruma ficaram.

É preciso relembrá-los, revivê-los, para que não se percam de todo. E a melhor época é esta: o término de cada ano. O fim de uma etapa, o fim de um caminho ou de um sonho até. É sofrido, às vezes, quando as imagens ainda se misturam com o presente pela recente distância. Mas ainda assim é preciso recordá-las em detalhes, em slow motion, ou talvez mereçam um longo zoom para que possamos senti-las em sua plenitude, como se donos do tempo fôssemos e tivéssemos o poder de cristalizá-las para nós, eternizá-las em minúsculas partículas, capazes, porém, de serem ampliadas quando desejássemos para que se tornassem de novo passíveis de toque.

São cenas da infância. Cenas da família que aos poucos se dispersa e se reduz. Das primeiras sensações afetivas da adolescência, de seus medos e seus pecados imaginários. Das vivências mais fortes como protagonistas de paixões profundas em que o amor por alguém nos conduz ao non sense e nem sempre é correspondido, ou se descobre, depois, que nem era tão forte assim o nosso sentimento. Era, talvez, mais uma sensação ilusória alimentada pela mútua atração que a presença do outro provoca em nós e nos faz sentir vivos.

No verso de uma foto tirada em meio a amigos em uma empresa, alguém redigiu no verso uma frase muito gasta, mas que me deu prazer em lê-la anos depois: “Recordar é viver”. E revivi mesmo as incontáveis horas que juntos passávamos debruçados sobre intermináveis relatórios, sem olhar para o dia que findava ou a madrugada que também já se ia afastando, preocupados apenas com o relógio e a qualidade do trabalho, no tempo estabelecido para a sua finalização. Passada a tormenta, era um prazer imenso rir com os amigos sobre o quanto havíamos temido falhar, não concluindo em tempo hábil a tarefa a nós atribuída. E aí sentíamos o delicioso sabor da vitória, ainda que pequena. Por isso, recordar essas passagens nos faz tão bem.

Então, “recordar é viver” sim! As fotos são a prova disso. E estas representam a vida pulsando com seus diversos matizes que, apesar da mudança de gerações, de comportamentos e de visões diferenciadas que o tempo produz, se repete e nos faz repetir os gestos dos que nos antecederam, ainda que com outra coreografia, outro cenário e com um novo projeto de iluminação. O figurino é outro, os atores interpretam de acordo com o gosto da plateia, mas a essência da narrativa do ato de viver não mudou porque a estrutura humana é, ainda, delicada e sensível às lembranças do que ficou de um passado que é só nosso.

O ano novamente termina, mas essas lembranças passeiam sem pressa e sem rumo pelos meandros dessa máquina maravilhosa que é o nosso cérebro, e a nós cabe ir escolhendo as melhores cenas e sobrepondo-as às que nos trazem tristeza, porque mesmo estas resgatam quase sempre aqueles a quem amamos. E os que amamos não devem ser esquecidos porque fazem parte de nós e de nossa história. São eles que nos tornam os seres humanos que somos.

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