Um avô equivocado

Tenho uma amiga de longa data, muito especial, que deixou cargos invejáveis tanto na vida acadêmica quanto na carreira de executiva, para se tornar, hoje, proprietária de uma livraria. Não em São Paulo. Em outra cidade, em outro Estado. Vive entre livros. Existe algo melhor para quem programou sua trajetória humana a partir das páginas das obras que seus olhos percorreram nas inúmeras horas de leitura; das vivências e valores que os autores em silêncio lhe sussurraram? Nesse universo literário, ela moldou seu perfil, ela se fez mulher sensível e cidadã consciente. Sabe distinguir o certo do errado, o culto do inculto, o digno do ignóbil. Seu nome..., deixa pra lá. Mas é o mesmo de sua livraria. É minha amiga e sempre se envolve muito com o que faz. Para ela, eu estenderia o tapete vermelho não só porque tem títulos, mas porque tem méritos. E estudou na PUC, como eu. E ambas aprendemos muito ali, com os cursos, as leituras e os nossos mestres.
Recebi dela um e-mail relatando um incidente insólito. Um garoto e seu avô se detiveram na vitrine de sua livraria. Ele, o garoto, começou a demonstrar, não se sabe bem, interesse ou curiosidade pelos livros e ali se demorava. Queria ver mais, e o avô começou a se irritar. Ele, o avô, não via com os mesmos olhos do garoto aquele mundo diverso e colorido que estampava nomes de autores e obras nas capas dos livros. O menino absorto não percebeu esse mal-estar do avô e continuou sua busca, se é que era uma busca, até que ela, a livreira e minha amiga, ouviu a voz autoritária que dizia ao menino: “Chega! Vamos embora. Aqui não tem nada para você comprar!”. Como? pensou ela, a livreira. Uma livraria não tem nada para se comprar?
Relatou-me, então, em seu e-mail que apesar de sua indignação dirigiu-se ao avô e procurou, sem ser indelicada, convencê-lo do contrário, pois sabia ela que a palavra de um adulto influencia demais uma criança ou um adolescente e a sua intervenção era totalmente negativa, em especial em uma época em que os jovens só buscam jogos eletrônicos e não mais se interessam pelos livros.
Eu, como ela, também me surpreendi com a cena por ela descrita; eu, como ela, senti vontade de dizer ao avô o quanto ele estava equivocado e quão negativa fora a sua postura ao negar ao neto o prazer de se encantar com a multiplicidade das obras ali expostas, de por alguns momentos imaginar quantas histórias surpreendentes de mundos fantásticos aquelas capas estariam encobrindo, e que bastava abri-las, como portas, para que as imagens adquirissem forma e vida e os personagens se transformassem em pessoas, personas, que como nós sonham, sofrem, se alegram e vivem em espaços tão outros que só existem mesmo, e só podemos alcançá-los, nas páginas dos livros.
Pobre avô, que passou pela vida sem conhecer esse mundo mágico dos sonhos! Pobre menino, cujo avô certamente não lhe contava nem inventava histórias miraculosas porque, em sua visão tosca de mundo, no universo só cabem coisas reais, concretas e que têm uma função prática, em que o lúdico ficcional jamais preencheu os espaços vazios que toda mente reserva para a imaginação criativa de um ser que, só depois disso, se pode realmente chamar de humano.
Realmente, a “Livraria da Silvia” foi palco de uma cena incomum ou de uma tragédia à brasileira.

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