O idiota

Chegou de mansinho. À minha frente, sentou-se e assim ficou. Calada. Os olhos se voltavam para a rosácea de pedras delicadas e brilhantes de seu sapato tipo rasteirinha, juvenil. Com as duas mãos segurava a bolsa pink e assim permaneceu. Três alunos à minha volta reclamavam das notas. Como assim? Tudo que escrevi e só essa nota? A explicação era longa, repetitiva, mas seu efeito parecia ter sofrido a mesma maldição de Cassandra, a sacerdotisa para cujas profecias ninguém dava ouvidos. Eu entendi sim, mas essa nota? Você quer dizer que estou reprovado? Não, essa não! Como professor, eu retomava a explicação. Os alunos repetiam o gesto de indignação. E os minutos passavam.
A menina da bolsa pink parecia ainda concentrada na rosácea de pedrinhas de seu sapato.
O celular de um deles tocou. É, cara, aquele idiota me reprovou. Senti uma revolta pelo qualificativo e instintivamente quis revidar, mas a frase seguinte alterou minha reação. Eu sempre odiei Estatística e ele sabe disso. Minha matéria não era Estatística. Então, não era comigo. Eu não era o idiota. Mas, então, ele também não sabia Estatística?! Não entendia de palavras e não entendia de números. E o professor era o idiota?
Em Dostoiévski, o idiota, personagem que também dá título à sua obra, era assim caracterizado porque não agredia ninguém. Perdoava as falhas humanas. Ele perdoou até o assassino de sua amada, beijando-o diante do corpo daquela a quem amara em silêncio e ali jazia morta por ele. O que é ser idiota? Rapidamente pensei que deveria pesquisar sobre isso. Do que eu sabia, há o esperto e o idiota e ambos sempre se apresentaram negativamente à minha compreensão. Não queria ser idiota, nem esperto. A esperteza está associada à falta de ética; a idiotice à falta de compreensão do mundo, das coisas que nele existem. E eu sempre buscara desenvolver minha capacidade cognitiva no limite que os deuses ou os genes me permitiram. E continuava nesse processo. Defendera teses. Obtivera títulos. E minha classificação agora, por esses garotos imberbes ainda, não deveria ser diferente daquela com que denominaram o conceituado professor de Estatística. Um idiota.
Minha revolta silente pareceu atingir a aluna de sapatinhos de vidro. Não, de vidro não. De pedrinhas revestindo a rosácea que dava graça àquela peça que compunha com delicadeza o figurino feminino. Seus olhos se ergueram e fitaram os meus. Na retina, eu via duas incógnitas. Tentei adivinhá-las. Não consegui.
Os garotos agora conferiam pelo celular as novas notas e as médias obtidas em outras disciplinas. Palavrões surgiram. Tô ferrado! Fiquei em Informática também. Aquele imbecil me reprovou? Eu só precisava de três e ele me deu um!!! Cretino! Pra mim ele deu dois, mas eu precisava de cinco. Vá se ferrar, cara! Vá se f... Nem a minha presença nem a da garota constrangiam os revoltados meninos em seus contínuos impropérios.
Senti, nesse instante, que ser chamado por eles de idiota poderia até ser um elogio; similar, talvez, a de um jogador de futebol quando recebe a alcunha de animal. Ele é um animal! Ele é fera! Ele é bom demais! Mas, não. Não era assim que nós, professores, éramos vistos por aquele grupo sem nenhum apetite pelo saber. Os qualificativos Idiota, imbecil, significavam idiota e imbecil mesmo, e muito longe estavam de uma forma carinhosa de tratamento.
Sem me dar importância, e já de costas, como se a minha presença fosse apenas virtual, foram saindo e comparando as notas, em meio a exclamações realmente ofensivas. Fiquei com as provas sobre a mesa e, sem ter mais o que fazer com elas, fui colocando-as cada uma em seu pacote. Senti até um alívio quando constatei que na sala só havia a garota de bolsa pink e sapatinhos com a graciosa rosácea, que já se levantava e a mim se dirigia com um sorriso meio tímido.
Vi sua carteirinha e seu nome. Que bom, agora já sabia seu nome, já começava a me lembrar. Eram tantos os alunos... E aí, Luciene? Tudo bem? Desculpe a fala grosseira de seus colegas, é que... Não se preocupe, não, professor, disse ela com uma voz tranquila. Relax. Relax. O meu problema é outro. Eu tenho faltado muito às suas aulas e estou com excesso de faltas. Por isso, talvez, nem se lembre de mim... E por que tem faltado tanto? O que ocorreu? Problemas de saúde, com a família?  Não, não, professor, é que saio muito à noite. Sabe a balada, os amigos... a gente bebe muito, e não consigo acordar de manhã. Dá pra dar um jeitinho aí e retirar minhas faltas? E, cuidadosa com as palavras, e em tom mais baixo. É simples, já me informei, é só alterar no Mapa de Médias e justificar que errou. Assim, eu faço umas DPs e vou levando o curso.
Olhei para ela atônito. Seus olhos fixos nos meus, profundos, tão profundos que neles cabia toda a sua safadeza. Fiquei perturbado. A surpresa me abalara. Não via mais a bolsa e os sapatinhos, apenas seu rosto, seus olhos e sua expectativa pelo sim. Tranquila esperava pela resposta. Para mim, um veredito. Mas não titubeei, apesar de saber que ela esperava uma resposta afirmativa. Sinto muito, Luciene, você está reprovada por faltas e eu nada farei para alterar essa situação. Seria desrespeitoso para com seus colegas que acordaram cedo, sempre assistiram às aulas, se esforçaram... Quem? Aqueles três que saíram daqui? Eles são meus colegas, frequentamos os mesmos barzinhos e por isso eles vinham às aulas de óculos escuros para poder dormir sem que você percebesse, e levantando-se altiva confirmou: E não percebeu nunca. Você é um idiota, mesmo! E saiu batendo a porta.

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