A vez do Juca


Preciso de um poema, hoje, para me auxiliar a descrever um momento difícil. Esse poema tem como título “Horário do fim”. É de Mia Couto, poeta e escritor de Moçambique, e sua diagramação iconicamente fica no limite da página. Por que será?

morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento

Não sei como ele surgiu em minha tela do computador, hoje, quando procurava, na verdade, um outro texto. Uma outra coisa que me distanciasse do que naquele momento muito me entristecia. São os acasos. Eles existem. Eles existem, sim, embora sem explicações lógicas. E o título do poema anunciava o que eu não queria vivenciar de novo: a perda de mais um dos nossos bichinhos.

O poema não iria amenizar o que eu sentia diante da previsível e já anunciada perda tão próxima. O que me levou à sua leitura foi a coincidência. O momento de Juca estava já na nossa mente e naquela sensação de vazio tão vivenciada por nós quando eles se vão. A minha primeira reação à notícia foi rever as fotos de quando ele chegou. Tão pequeno, sujo e carente, mas com olhos tão meigos que logo nos conquistou a todos.

Não, eu não iria olhar as fotos. Não agora. Aquele nosso menino, ciumento, de pelo caramelo, longo e macio, se desenvolveu, transformou-se num belo cão e ganhou o carinho de todos. Foi muito amado. Foi também um atleta memorável. Participou de concursos de Agility, desfilou com figurinos para os Pets, e eu o via com paixão. Que gracinha!

Juca encantava também pela forte personalidade. Amigos eram a sua família, ou melhor, os seus “pais”; os outros, inimigos. Para eles, rosnava. Para os “pais”, era só carinho. Quantas alegrias, Juca! E quando à noite, já adormecidos, ele pulava na cama e se jogava sobre nós, “pais ou avós”, como se travesseiros fôssemos para ele. Não dá para esquecer!

Mas, agora, tudo isso ficou para trás.Os problemas da coluna surgiram, e o garoto que ia feliz pelas ruas deixou, aos poucos, de andar. Esses problemas começaram a atormentá-lo e os medicamentos passaram a fazer parte da rotina. A paralisia das patas, as sessões contínuas de acupuntura e fisioterapia, também. Os carrinhos especiais para levá-lo aos passeios foram necessários, e ele continuou acompanhando o mundo no entorno, mas não mais pelas próprias patas. Foram tempos difíceis, cada vez mais difíceis.

Agora, chegou o momento. É preciso, apesar da tristeza, cortar esse fio que o liga à vida, mas o liberta para um sono bom, sem medos e sem dores. E nós, que ficamos, estaremos ainda por muito tempo sentindo a sua ausência, com saudade, e com o mesmo carinho, achando também, como Mia Couto, que este momento nunca é justo, porque ele nunca deveria existir.

Mas ele existe. Oh! Sim. Ele existe. E como faz sofrer!

2 comentários:

  1. Neste momento de perda e dor vejo que a Neiva encontrou nas palavras do Mia Couto um aconchego na estrada da vida: há nascer, viver e morrer.
    Fico feliz, se assim se pode dizer, que tenha citado o Mia Couto. Sou admiradora incontestável do mundo da CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa pela sua riqueza multicultural, pujança econômica e robustez de povos que lutam por dignidade humana. A divulgação dos trabalhos de seus membros só engrandece a todos os que têm a língua portuguesa como sua pátria.
    Aproveito para reproduzir um outro poema, que me é muito caro, pois também amo os animais, é um hino à vida que entrelaça os seres (ir)racionais, que tem como título "Baby":
    Meu cão é meu bebê.
    Ele me olha com doçura.
    Uma doçura morna e vítrea
    Incomum.
    De fim de verão e começo de inverno.
    E eu retribuo sim:
    Com ternura e muito afago.

    Entre meu cão e eu
    A simbiose é perfeita.
    Um simples sistema de trocas:
    Trocamos carinhos e carências.
    E o mundo em profunda quietude
    Por fim adormece
    Tranquilo a nossos pés.
    autora Neiva Pitta Kadota em Enguias e Estrela

    Tenho a certeza que o Juca "por fim adormeceu para sempre" e a ternura e afago continuarão para o Baby até que o ciclo da vida se complete, mesmo não sendo justo.

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  2. Comentários como este são raros. Raríssimos, eu diria. Sensível, delicado. sincero. E só poderiam partir de alguém como você, Graça, uma amiga de verdade, uma amiga eterna. Porque nos conhecemos de longa data. Porque nos apoiamos mutuamente em muitos momentos difíceis e porque compartilhamos inúmeras histórias familiares e profissionais, as mais instigantes, e que entrelaçadas resultaram nessa relação tão identitária, a que chamamos amizade.
    O meu abraço.

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