A escola, a formação e as leituras

Em meio às imagens meio que nebulosas do passado, de repente, uma ou outra cena ocupa a telinha de minha mente como se a vivenciasse agora. Nítida, sem distorções. E nela vejo pessoas que comigo compartilharam momentos delicados, decisivos, e dos quais tenho saudade. De meus pais, por exemplo, de meus irmãos, da troca de afeto que era constante entre nós, do respeito com que recebíamos as orientações e os ensinamentos tanto em casa quanto na escola. Saudade também do olhar tão ingênuo com que víamos, meus irmãos e eu, o mundo externo a esses espaços, ou seja, o mundo além do lar e da escola. Tudo era tão tranquilo, tão mágico, tão maravilhoso no nosso exíguo reduto! E tão diferente dos dias de hoje!

E a escola? Ah! A escola! Era a continuação de nossa casa. Os professores, extensão de nossa família. Havia uma relação de afeto e de respeito. A ela íamos felizes e orgulhosos com o material nas bolsas. Bolsas, sim, não havia mochilas, como agora. E parecia que por elas transportávamos tesouros. Livros e cadernos encapados caprichosamente com papel de seda verde, a cor simbólica; lápis cuidadosamente apontados, pois a palavra lapiseira ainda não havia entrado em nosso vocabulário; estojos; borrachas, e tudo mais que os mestres de nós exigiam para as atividades em sala. E a aparência, e a vestimenta escolar? Por elas ficava demonstrado todo o empenho da família com os uniformes limpinhos, bem passados e os cabelos penteados com esmero. Mamãe me fazia cachinhos e eu ia toda feliz, toda vaidosa. Parecia até que íamos todos os dias a uma festa, tal era a preocupação com os detalhes. E na verdade, para meus pais, era uma festa que só agora consigo decodificar, uma festa em que se comemorava a aquisição diária do saber.

Na sala de aula, os professores muito bem preparados, passavam os ensinamentos num ambiente de tranquilidade, mas com o rigor necessário a um aprendizado eficiente, e de nós esperavam o melhor resultado, o que em geral acontecia. Havia provas escritas e orais e morreríamos de vergonha se não soubéssemos responder às questões propostas com o máximo de eficiência, cientes de que era isso que eles esperavam de nós. E não iríamos decepcioná-los. Por isso, o estudo diário, os exercícios repetidos e acompanhados pelos pais para que nenhum fracasso ocorresse nessa jornada. E eles não ocorriam. E as notas obtidas confirmavam essas pequenas grandes vitórias.

Por esses motivos, talvez, as imagens dessa fase continuam vívidas em minha mente e delas, ao revivê-las, sinto saudade. Uma saudade terna dos mestres, dos coleguinhas com quem dividíamos as brincadeiras no chamado “recreio”, do passeio que era ir de uniforme e a pé à escola tão pertinho de casa, mas segura pela mão de meus irmãos mais velhos, e do orgulho de ao final de cada mês entregar a meu pai o boletim cujas notas compensavam todo o esforço despendido por todos nós.

A escola se tornou, então, um marco em minha infância e também na adolescência, mas foi com o hábito de ler que os espaços em minha mente foram lentamente sendo preenchidos por personagens da literatura e deles nunca mais me separei. Personagens como Clarissa e também Olívia, de Érico Veríssimo; de Capitu e Bentinho, de Machado de Assis; de Macabéa e GH, de Clarice Lispector; de Faustine, de Adolfo Bioy Casares; de Emma Bovary, de Gustave Flaubert; de Riobaldo, de Guimarães Rosa; de Raskólnikov, de Dostoiévski; de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e de tantos outros que é impossível enumerá-los, mas que transitam livremente pelos labirintos de meu cérebro e quando insistem em me contar de novo suas histórias, recorro às minhas estantes, abro a obra e retomo a leitura. E outra vez mergulho nos meandros dessas narrativas que de tão intrigantes e bem estruturadas pelo autor parecem me revelar novos fatos, novas sensações, que em leituras anteriores, eu posso até jurar, estavam em ausência nessas páginas já tão manuseadas por mim.







2 comentários:

  1. Neiva, não tenho certeza se o seu texto é real ou ficcional, mas ele me trouxe muitas memórias da minhas escolas.
    Por mais que eu tenha frequentado a escola algumas décadas depois de você, também me lembro do capricho que minha mãe tinha ao encapar meus cadernos, cada ano com uma cor diferente pré-selecionada pela Escola. Também me lembro de ter o uniforme impecável, sem nenhuma mancha ou furo, por mais que eu o desgastasse e sujasse diariamente, já que quando eu era pequeno a disciplina não era mais tão exigida quanto na sua infância. Por haver vivido em muitos lugares diferentes, tive várias escolas. Algumas delas bem tradicionais e que proibiam o uso de corretivos e lapiseiras, logo esses novos apetrechos nem sempre fizeram parte do meu vocabulário.

    Mais do que toda essa infância especial que tive, o seu texto me fez pensar em um ano muito importante na minha vida, quando eu morei na África do Sul e frequentei um colégio de educação inglesa, mas que se falava africânder. Lá o uniforme não era somente uma calça e camiseta. Tínhamos que usar diariamente um blaser, camisa com gravata e calça social com sapatos de couro e cinto. As meninas sempre com cabelos presos e os meninos com o cabelo sempre aparado e penteado. Tudo era diariamente passado a ferro. Como se todo esse preparo não fosse o suficiente, somente uma minoria das pessoas comprava o lanche na cantina da Escola (cantina onde alguns dos pais se voluntariaram para trabalhar). A maioria trazia algo feito de casa. Os professores eram sempre chamados de Senhor (Meneer) ou Senhora (Mevrouw) seguido de seus respectivos sobrenomes.

    Que delícia parar para pensar nesse tempo que passou, mas que ficou!

    Um beijo!

    Uriã.

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  2. Como é bom, Uriã, contar com um aluno e amigo tão maravilhoso como você!
    Apesar da imensa distância de faixa etária entre nós, o seu olhar em relação a vários assuntos, como educação, leituras, posturas éticas, ideologia e tantos outros, coincide com o meu. Saber que há, também, similaridades na formação que recebemos só faz aumentar o meu carinho e a minha admiração por você.
    Grata, Uriã, pela delicadeza de seu gesto e de suas palavras ao comentar o meu texto. Palavras cujas sensibilidade e competência surpreendem e seduzem o leitor.
    Que delícia ver em seu texto uma imagem quase especular do meu!
    Bjs
    Neiva

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