Hum! Aquelas balinhas de mel!



Elaine, a sobrinha, ligava às quintas-feiras à noite. Oi, tia. Tudo bem? E a conversa ia longe. Morava em uma outra cidade. Naquela noite, ela parecia sorrir de novo. Que bom! Foram meses de insônia e angústia pela doença do pai. Filha única, e já órfã de mãe, afastara-se do trabalho para cuidar dele com o carinho que ele merecia e com ele ficou até o desfecho. Viajou, então, por um mês e, em seguida, retornou ao trabalho. Fora alocada em outro departamento e ligara para contar as novidades.

Você não imagina, tia, o que eu descobri. E começou a relatar um fato que a princípio parecia estranho. Elaine era também sua única sobrinha e, talvez por isso, laços fortes as uniam.

Você se lembra, tia, do Eduardo que estudou com você no colégio? Quem? O Eduardo, um loirinho de olhos verdes que na época era muito magro. Ele me mostrou umas fotos. E em uma das fotos do grupo de formandos você também estava. Vocês estavam juntos na foto, tia! Ele era bem mais alto. Aliás, você não cresceu muito, não, depois disso. E riu.

Não, não me lembro. Acho que nunca vi essa foto. Isso faz tanto tempo, menina!

Pois é, tia, você nem se lembra mais dele, mas o Eduardo... Foi a primeira coisa que me perguntou assim que me viu no departamento. Você é sobrinha da Helen, não é? Vi seu nome quando foi transferida e agora vejo que a semelhança é enorme. Os mesmos olhos, o mesmo sorriso... só é mais alta. E me contou muitas histórias. Tia, como não se lembra se eram tão amigos, vocês se viam todos os dias no colégio, ele levava balinhas de mel pra dar pra você... Balinhas?! O Eduardo??! Meu Deus! Faz tanto tempo isso. Mas o tempo pareceu se afastar e as imagens começaram a ganhar visibilidade.

O Eduardo, aquele garoto tão fofinho! As balinhas de mel! Como me esquecera dele? Um menino tão educado, tão atencioso e meigo. Nas aulas em que os professores dividiam a sala em dois grupos para debates ficávamos sempre juntos, porque estudávamos muito e juntos éramos imbatíveis. Dos professores, só recebíamos elogios.

Mas, então, Elaine, você está no departamento dele? E o que ele faz? Ele, hoje, é engenheiro sênior, tia. É responsável pelos projetos de Saneamento e me deu muito apoio nesta primeira semana. Conheceu meu pai e diz que eu sou elétrica como ele. E também comentou: é a marca da família. Quis, então, saber de você... E você falou das minhas atividades? Eu, tia? Não foi preciso. Da sua vida profissional ele sabe. Ele acompanha. As perguntas foram sobre você:você, pessoa. Se vive bem, se está feliz, se continua minuciosa. Essas coisas... Mas ele é muito discreto. Hoje, eu disse que iria te ligar à noite e ele disse: pergunte a ela se ainda se lembra do garoto que não ia ao colégio sem antes comprar balinhas de mel pra ela. Achei graça e prometi perguntar.

É muito divertido tudo isso. Sabe, tia, eu estou amando trabalhar com este novo grupo.

Naquela noite, Helen não conseguiu adormecer. O relógio de pedestal na sala, presente do irmão que já se fora, ia marcando sem pressa o tempo. Uma, duas, três horas. Exceto as batidas do relógio, tudo o mais era silêncio. E um silêncio que incomodava. Levantou-se. Com ela, as lembranças caminhavam pela casa. Eduardo?! Aquele garoto... Ele agora ocupava todas as cenas da memória. Eram pré-adolescentes. Havia afinidade entre eles, apenas isso. Será que era apenas afinidade? Talvez, sim, talvez, não. Coisas da adolescência.

Sentiu uma saudade leve daquela iniciação que só agora se mostrava perceptível. Mas por que ele sabia de seu percurso profissional? Por que acompanhara tão de perto, apesar da distância nesse longo tempo, essa sua trajetória no campo da arte? É verdade que fora premiada, sim, em alguns momentos, mas não chegara a brilhar no cenário artístico como sonham os jovens em início de carreira. Acostumara-se a uma ou outra exposição individual, em que seu nome surgia nas colunas sociais, mas nada como uma Lygia Clark, uma Anita Malfatti. Nos leilões de arte sempre conseguia um certo destaque. Nada, porém, muito relevante.

Sua vida não fora monótona. Viajava sempre que surgiam oportunidades. Visitava museus, conhecia artistas e chegou até a expor em Portugal, por intermédio de uma amiga bem relacionada e esposa de um embaixador. E foi exatamente em Lisboa que tudo mudou, que seu casamento de vinte anos se desfez. De repente, perceberam ambos que a paixão se extinguira. Que fora substituída por um sentimento morno, ameno. Que o muro entre eles fora-se erguendo lentamente e tornara-se insuportável a relação, intransponível a barreira. Ela voltou só; ele ficou com a esposa do embaixador, sua amiga.

Naquela ampla e confortável casa, ela há muito circulava sozinha. Sem filhos, sem um novo relacionamento afetivo, dedicava-se quase que exclusivamente à pintura. Percebeu, então, que não havia mais doçura em seus dias. Lembrou-se das balinhas de mel. Quem hoje tentaria conquistar alguém com balinhas de mel? Quem, como Eduardo,tão gentil e em tempos idos, se lembraria de apontar seus lápis antes do início das aulas? E ele nada pedia em troca. Apenas sentavam-se lado a lado em carteiras próximas e isso era o bastante.

Sentou-se diante da tela virgem, tracejou lentamente um rosto de menino, uns olhos que depois ganharam a cor verde. Foi esculpindo na tela a imagem de um garoto tímido, de sorriso contido e mãos de artesão e, num ímpeto incontrolável, apoiou em seu ombro o rosto miúdo de uma menininha de olhar inquieto que desembrulhava uma bala envolta em papel amarelo. Nele, liam-se somente as letras ME.

5 comentários:

  1. Neiva
    Li seu conto com muito prazer. Traz inteiros seu refinamento e sua sensibilidade. Parabéns! Abraços

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  2. Neiva
    Li seu conto com muito prazer. Traz inteiros seu refinamento e sua sensibilidade. Parabéns! Abraços

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