O olhar e o traço de Kurosawa

O tempo é a duração relativa das coisas, segundo o Dicionário Aurélio. O tempo nos dá a sensação do instante em que vivemos e, também, de um período anterior a este e ainda de outro posterior a ele; o que nos permite diferenciar o hoje, o ontem e o amanhã. Tudo e todos têm um tempo. As pessoas costumam dizer “no meu tempo...” para relatar a alguém mais jovem o que fizera em um outro período da vida. Segundo o filósofo Bachelar, o tempo é a soma dos instantes. Por isso, os tempos são diferentes para cada um de nós. E a sensação que temos é de que o tempo é mutante, porque às vezes parece que passa rápido demais e às vezes que se alonga infinitamente. Pura impressão nossa. Ele apenas dimensiona a duração de um determinado acontecimento ou fenômeno. Nada mais. Contudo, entre um tempo e outro quantas coisas acontecem!
O tempo do cineasta Akira Kurosawa foi comemorado em São Paulo, em 2010,  pelo esforço conjunto do Instituto Tomie Ohtake e da Mostra Internacional de Cinema que nos revelaram uma face pouco conhecida de sua arte: o desenho, o traço. E que traço! Não fosse ele o grande diretor de filmes imperdíveis como “Kagemusha”, “Ran” e o sedutor “Sonhos”, entre inúmeros outros, Kurosawa poderia hoje estar ocupando as melhores galerias de arte de todo o mundo, como artista plástico, com seus desenhos e aquarelas que só agora começaram a ser vistos pelos brasileiros que tanto admiram a sua linguagem fílmica. São originais para storyboards dos filmes citados e até de alguns que não chegaram a ser transformados em películas. Por falta de patrocínio talvez. É que a arte nem sempre é vista com a seriedade e a sensibilidade que ela merece. É assim, muitas vezes, não só no Ocidente mas também no Oriente.
Mas o que mais nos surpreendeu nessa exposição foram as minúcias que o olhar do artista capta e registra em seus desenhos como a riqueza e a variedade dos motivos florais das vestimentas em cores múltiplas, os detalhes dos cenários internos ou externos, os minúsculos traços que compõem o exército infinito dos soldados que em uma massa compacta irão enfrentar os inimigos. É a movimentação e a velocidade que seus desenhos, em rápidas e precisas pinceladas, oferecem à criação de cenas que caracterizarão a heroicidade de seus personagens. Nada escapa à imaginação e ao planejamento das cenas, à visualização prévia do que se teria depois nas telas de exibição do Japão e, principalmente, fora dele.
A exposição homenageou o centenário de nascimento de Kurosawa, um artista completo em seu fazer, que optou pela carreira cinematográfica e utilizou o seu tempo, a sua permanência entre nós, para a produção de uma arte que marcou a época áurea da filmografia japonesa, período compreendido entre as décadas de 40 e 80 do século passado, e que nem o tempo apagará de nossa memória. É que o sonho de um artista quando expresso com “engenho e arte” acaba por habitar a mente coletiva, contaminando a todos com as imagens do seu mundo interior e as sutilezas de sua sensibilidade.

Obs.: A exposição denominada “Kurosawa: criando imagens para o cinema” apresentou-se no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, no final de 2010. E este texto foi originalmente escrito. à época, para o Jornal Condomínos S. A.
  

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