As
perdas que importam
Nos dias de espera por tempos de sol, alegria e
liberdade, vamos cada um de nós buscando uma forma de ludibriar a tristeza e a
solidão que, em geral, nos envolve. Eu também.
Acordo sem pressa. Acaricio os lençóis e cobertores
que me aquecem nestas noites frias e sinto o prazer do conforto de estar em
casa. Na minha casa. Não tenho mais horários, nem urgências como antes. Ninguém
me chama ou pede ajuda. Ninguém espera pelo café da manhã. Nem eu mesma.
Primeiro, o banho demorado. Se o telefone toca, deixo tocar. Respondo depois. É
simples, o registro está na telinha do celular.
Pela vidraça espio a presença ou não do sol. Se
luminoso ele me olha, é o bastante para que eu sinta que meu dia será ótimo.
Tomo feliz meu café e fico fazendo planos para as atividades das próximas
horas. Hoje foi assim. E surgiu a dúvida: vou selecionar fotos ou vou tentar escrever
um pouco, nesta manhã?
Escrever, não, eu logo pensei, porque só consigo
redigir alguma coisa à noite. E ler também, quase só à tarde ou à noite. Vou
optar pelas fotos. Mas são tantas, meu Deus! E eu não sei organizar nada.
Quando digo isso para as pessoas, elas não acreditam. Nunca sei por onde
começar. Exceto preparar aulas e atividades similares que, para mim, são um outro
afazer. Não sei explicar.
Meu dia terminou se pautando por rever as centenas
de fotos que se encontram em álbuns, as mais antigas. E em caixas, nos armários,
ou ainda as guardadas em gavetas. E são tantas porque quando os filhos se
casam, eles deixam conosco o que não querem levar para a nova casa, para a nova
vida, e em especial as fotos de viagem ou outras. Assim, elas se acumulam
esquecidas nesses locais de pouco acesso.
Esse, porém, é um trabalho que não evolui porque as
fotos trazem de volta momentos distantes, cristalizados numa imagem pretérita.
E rever o passado é transitar, de novo, pelos caminhos já trilhados e
eternizados nas ranhuras da memória. “Que linda essa foto! Foi em Montreal.
Não, foi em Toronto. Acho que sim, Foi sim. Ou não? Nesse dia começou uma
nevasca e por isso meu casaco está com pontinhos brancos na altura dos ombros.
Corremos para os shoppings subterrâneos para lá nos aquecer e esconder da
nevasca. E foi lá que ele tirou essa foto. Foi tão divertido!”.
Vejo outra caixa e “Olhe a carinha feliz desse
menino!” Ninguém diria que ele tinha passado a noite com crise de bronquite, e já
tínhamos até desistido do passeio. Mas mudamos de ideia assim que ele melhorou.
Era a festa do Figo, na cidade de Itu.
Abro um
envelope grande e nele me deparo com fotos mais delicadas. Eram fotos de
antigas namoradas dos meninos. Pensei: “E agora, o que fazer com elas? Não
posso, nem quero magoar ninguém. Sei lá.” E as guardei novamente, ou melhor, as
escondi.
Revi inúmeras outras fotos e as fui separando em
suas respectivas caixas para entregá-las, depois, a cada um. Percebi que o
trabalho é lento, muito lento, porque cada foto contém uma história. E eu as
relembro uma a uma.
As nossas fotos, minhas e do Kendi, procuro não me
deter muito nelas. As do Canadá me trouxeram uma saudade imensa. Acho que ainda
estou muito sensível para rever essas imagens.
Isso me trouxe à mente um fato antigo que me
surpreendeu muito à época dos acontecimentos, e só o compreendi depois, bem
depois. Minha sogra, após perder o filho caçula, muito jovem, num acidente de
carro, um dia entrou em seu quarto, esvaziou as gavetas com seus pertences
pessoais e todas as fotos, e queimou tudo no quintal da casa onde viviam.
Que loucura! eu pensei. Depois entendi. Podemos
perder tudo, na vida, mas a perda de um filho deve ser a dor maior,
insuportável mesmo. E para não sofrer mais, ela tentou apagar as lembranças.
Somos humanos e nem sempre somos fortes o suficiente
para suportar dores afetivas muito especiais.