Saindo de um hospital onde estivera fazendo alguns exames
médicos, encontrei um amigo que ali estava chegando com os mesmos fins. Foi um
bom momento porque nos revimos depois de algum tempo distanciados e nenhum de
nós parecia estar com problemas graves. Que bom! eu pensei.
Conversamos pouco. Não havia tempo. Mas a ambos não passou
despercebido que levávamos conosco um livro nas mãos e não o celular, como todo
mundo hoje. É do Mia Couto? ele me perguntou. É, sim, “O último voo do
flamingo”. É divertido, mas muito poético também. Estou quase no fim e amando.
E o seu? Estou lendo o Coetzee “A vida dos animais” e completou: é meio
complicado. É verdade, eu disse. Li já faz algum tempo, mas ainda me lembro. São
palestras, são intelectuais apresentando várias visões divergentes sobre a
inteligência dos bichos. Lembro também que gostei muito da última fala. Acho
que você irá gostar também. Ele sorriu meio que aliviado e nos despedimos
porque ambos tínhamos horários e compromissos depois.
No táxi, de volta para casa, me surpreendi observando as
pessoas nas calçadas ou atravessando as ruas, todas jovens, ou parecendo
jovens, e todas com celulares no ouvido. Nenhum livro nas mãos. Que pena! Quando
parávamos nos semáforos, podíamos até ouvir as vozes e fragmentos de frases. Hoje,
tudo parece que se tornou público. Que horror! eu pensei baixinho, bem baixinho.
Mas o taxista parece que me ouviu, se voltou e sorriu. Ambos, porém, mantivemos
em silêncio o que se agitava em nossa mente. E a viagem assim seguiu.
Voltei a pensar no livro de Mia Couto. Uma história de
violência contra um povo sofrido da África. O povo de Tizangara, em Moçambique.
Uma história de lendas, fantasia e feitiçaria. Explosões violentas de corpos de
soldados em missão de paz. Explosões de corpos ardentes em busca de quietude. Cenas
hilárias se entrecruzam com trágicos relatos e amenizam o acompanhar das
histórias. Os desafios de um italiano em terra estranha e seu tradutor. Os
mistérios dos antepassados se mesclando aos viventes. E a história do tradutor
e o velho Sulplício, seu pai, um colecionador de passados que um dia confessou
“Ando a aprender a língua dos pássaros”. O que comprova que o sonho latente das
alturas não se extingue nem com a mais dura opressão.
“O último voo do flamingo” é sedutor no surreal que permeia
as narrativas de uma terra distante e na poesia que envolve esses relatos. Não
é útil como um celular, mas enche de beleza o nosso mundo interior. Para mim, e
para alguns amigos meus, isso às vezes basta.
Sua crônica, Neiva, de forma delicada e perene, sugere o verdadeiro alimento para nossa alma, a boa leitura, o que nos basta diante de um mundo em que as coisas são líquidas, efêmeras como as fotos que se encontram no celular se não forem imediatamente reveladas como o eram as de câmeras convencionais... . Amo ler o que você escreve, obrigada! Um beijo.
ResponderExcluirAnjinha linda do meu coração.
ExcluirMarize, tenho saudade! A boa leitura alimenta nossa alma, do mesmo modo que as(os) amigas(os) como você e Neiva mantêm nosso coração pulsando alegre!
ExcluirSou eu quem agradece, Anna, por suas palavras tão ternas e tão pertinentes ao confrontar o mundo analógico e o digital. Cada um tem suas qualidades positivas e negativas,sabemos, mas o que nos entristece são as perdas, as substituições, as ausências ... Bjs
ResponderExcluirEssas minhas lindas...Neiva querida e Anninha. Duas pessoas com quem compartilho a importância do ler e não só do ver. Essas perdas serão para sempre. O conhecimento nunca se perderá. A tecnologia é líquida como dizia Baumann. Beijos no coração de cada uma.
ResponderExcluirMarize querida,
ResponderExcluirApesar do longo tempo decorrido, após a graduação, algo nos mantém unidas e talvez sejam as afinidades éticas e, como você mesma diz, o compartilhamento "da importância do ler e não só do ver". A importância do ato de ler e com ele a aquisição do saber, sobre o mundo e sobre nós, está ali em poucas ou muitas linhas, mas resgatando a cenas e ideias de acordo com a sensibilidade de cada um. Isso é mágico. Bjs
Errata: Por favor, leia ""resgatando cenas e ideias"
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