Uma leitura sensível e precisa


A vida acadêmica sempre nos reserva surpresas e talvez seja essa também uma das razões porque nós, professores, nos sentimos instigados a dar continuidade a essa atividade de buscar levar mais algum saber àqueles que, com maior ou menor interesse, nos ouvem em sala de aula. São jovens, são ousados, e às vezes até contestadores mas também, e em sua maioria, gentis e dedicados e ainda portadores alguns deles de um repertório invejável.

E é exatamente por essa constatação que optei por mostrar aqui um texto que, melhor do que as minhas ponderações, revelará o potencial e a sensibilidade de um aluno do Curso de Cinema, Andrés Enrique Alarcón, diante da leitura de uma obra de J.M. Coetzee Desonra, que nada tem de fácil e, por isso, nem sempre é compreendida por seus leitores. Leitura essa que exige um olhar sensível e perspicaz , um olhar semiótico, certamente acostumado às descobertas cognitivas de textos literários de qualidade superior.

Andrés me surpreendeu positivamente e aqui está seu trabalho. Um texto para se ler e reler.

“J. M. Coetzee, em sua obra Desonra, nos apresenta como personagem principal o professor de Comunicação David Lurie. Um homem já mais velho, David era divorciado de sua primeira esposa e lecionava em uma universidade na Cidade do Cabo, na África do Sul. Logo no início da história, o protagonista sofre uma desilusão, no caso, amorosa. Soraya, uma prostituta com quem ele frequentemente se relacionava, rompe com a relação deles por ser, paralelamente, uma mulher casada e com filhos.

Em busca de confortar a sensação de perda deixada por Soraya, David encontra em uma moça chamada Melanie, um possível refúgio de seus problemas. O único problema era que Melanie não era apenas uma moça qualquer, ela era sua aluna, muitos anos mais jovem do que ele. Mais uma vez o personagem principal tem de lidar com a perda. O curto relacionamento com Melanie é interrompido. A moral, a pressão social, não permitem que os dois avancem juntos. Além disso, David não cumpriu com seu papel de professor e ultrapassou a barreira existente entre educador e aluno e, por isso, foi afastado de seu cargo no Curso de Comunicação.

Desacreditado de relações amorosas e farto de tentar fazer entender seus princípios diante de um júri que julgara sua permanência ou não no antigo emprego, Lurie parte em uma pequena viagem para a fazenda onde vive sua filha Lucy, em uma pequena casinha situada no interior da África do Sul. Dessa vez, o protagonista é confrontado por todas as suas questões mais profundas e pessoais possíveis: a necessidade de desapegar-se da rotina frenética de uma cidade grande e o contato com o campo, os animais e as pessoas simples que ali vivem.

Em diversos momentos, o autor coloca David Lurie em um embate com questões morais e éticas que comprovam que nós, seres humanos, estamos a todo momento tentando provar sermos capazes de manter nossa integridade a fim de nos desviar dos julgamentos sociais que a todo momento tentam nos moldar. A questão proposta pelo autor é: até a que ponto devemos trilhar nosso caminho, realizar nossas escolhas, seguindo nossos princípios, vontades e virtudes e até a que ponto devemos nos vigiar e escrever nossa história de acordo com regras e normas sociais que nos são impostas?

Na busca por respostas, David tenta de todas as formas solucionar suas questões sem ferir a sua honra, nem a dos que o cercam. Por muitas vezes, toma as dores dos outros, e envolve-se com problemas que não lhe dizem respeito. Termina sozinho, depositando todos os seus princípios morais em um rascunho para uma ópera envolvendo Byron e Teresa. Obra que nunca sai do papel. Desonra!”

Andrés Enrique Alarcón

Equívocos


(Para Thales)

Um ano termina e outro começa,
para alguns.
Para outros,
o verão sequer chega ao fim.
É interrompido no prelúdio da embriaguez
do sonho,
da vida,
do amor.
Opção pela finitude?
Não.
Equívocos. Equívocos. Equívocos.
A noite se equivocou.

As viagens e a vida


O avião vai decolar. Os comissários de bordo checam os guarda-volumes. Estão todos travados? Sim. Os passageiros atendem aos chamados de ajustar os cintos. Está tudo em ordem? Sim. Iniciam-se as demonstrações de como proceder em caso de imprevistos: máscaras de oxigênio, coletes salva-vidas... E na mente dos passageiros agora surge a dúvida: E como estarão piloto e copiloto? Tranquilos? E a saúde mental e física? Esse é um elemento novo na preocupação dos viajantes.

Depois do acidente nos Alpes franceses, esse quesito ganhou a devida importância. “Mens sana in corpore sano” voltou a ocupar o mesmo grau de importância da experiência no ar da tripulação, dos quilômetros percorridos abaixo e acima das nuvens. E os passageiros por um tempo, ainda que curto, terão em mente que 149 ocupantes de uma aeronave foram conduzidos à morte por um copiloto que depressivamente a desejava, mas de forma espetacular para ser vista e comentada repetidamente pela mídia e pelo público, como soi acontecer nos dias atuais.

Esta é uma questão para ser debatida e explicada por especialistas da área da psicanálise, e este não é o espaço pelo qual circulo. Limito-me a tudo observar pela ótica de uma leiga que sou nestes assuntos, mas que tenta entender, pela lógica talvez, as loucuras humanas que sempre existiram e que tanto espanto causam àqueles que as presenciam como agora.

São 149 vidas atiradas do alto e destroçadas no solo quando o que certamente desejavam era dar continuidade aos seus projetos de vida, aos seus sonhos, muitos deles acalentados por um longo período e que agora, interceptados pela alucinação desenfreada de um profissional das alturas, ali silenciaram para sempre.

Não pude deixar de pensar sobre isso voando para São Francisco, na Califórnia, onde passei uma agradável semana dividindo o tempo entre o pôr do sol do Pier 39, a belíssima vista que nos oferece a Golden Gate e a visita aos vinhedos de Napa Valley, no entorno, fazendo esse trajeto pela via férrea, o que representa um salto retroativo no tempo com um carro-restaurante que resgata o luxo dos viajantes do passado, tanto na decoração quanto nos pratos servidos e na sutil gentileza dos garçons que completam a harmonia entre os elementos que compõem o cenário. Foi uma Páscoa diferente sob o sol intenso que ilumina toda a Califórnia e o vento friíssimo que vem do Pacífico, cujo contraste ameniza os excessos e possibilita o prazeroso ir e vir dos passantes.

O tempo, contudo, passou rápido demais e chegou a hora de voltar para casa. A caminho do aeroporto eu me sentia em paz comigo e com o mundo. Em minha memória, o registro vivo das imagens vistas e vividas provocavam a sensação de que a vida é bela, sim, e que essa não é apenas uma frase de efeito, não é apenas um título de filme. É muito mais. E pensei ainda: se a tripulação de meu voo estiver tão feliz quanto eu, poderei ainda mais vezes voar em segurança entre as nuvens na busca de novas paisagens que me façam sentir a vida em toda a sua variância e plenitude e dividir, por meio dos relatos, esses bons momentos com os demais. A vida é bela, sim, e deve ser tratada com cuidado e com carinho.