Uma leitura analítica de ENGUIAS E ESTRELAS

Recebi um afago literário com a leitura de Clara Machado, professora de Literatura e amiga de longa data, de minha última obra Enguias e Estrelas e me senti irresistivelmente lisonjeada. Se mereço essa delicada e aprofundada análise, é uma outra história, mas que o texto é de uma beleza incomum, isso é inquestionável. Vamos a ele:


"O título é instigante, não só porque se apoia em Cortázar, mas por sua pertinência ao que sugere. “ENGUIAS”, peixes serpenteantes, indicia um deslizar pela profundidade, serpenteando no tempo... Isso nos leva à metáfora da busca do eu poético.

“O tempo: tudo é fugaz, tudo se desfaz” (p.7), desafia o leitor a mergulhar nos poemas para “pescar” o sentido na profundidade, considerando que na superfície somos seduzidos pela música antes de capturarmos os sentidos.

Do outro lado, as ESTRELAS, distantes, inalcançáveis, cintilantes, colocam a questão: será algo relativo à busca?

Depois da primeira leitura começamos a preencher a opacidade dos sentidos que estão além. Entendemos que o título soa quase como um “oráculo” que prenuncia algumas referências.

Fluidez, nadar em águas profundas, encontro com as sombras ou saltar para o AZUL, a duplicidade dos sentidos entre o escuro (estrelas) e o distante, o que nos leva aos desejos, aos sonhos,à efemeridade do tempo...

Os poemas surpreendem pelo jogo bem estruturado entre superfície musical e profundidade textual, o que pode levar os leitores a vários caminhos. Desde a primeira leitura, em muitos poemas, é possível sentir uma grande inquietação e angústia. Em geral, essa angústia não é evidente, pois vem mascarada pela musicalidade e pela agradável construção sintática. Neiva tece com maestria “a escrita como operação musical”. (Cortázar, p. 5).

Alguns poemas podem servir de bússola para evidenciar o que pode afetar um leitor desprevenido:

1) A perda (105): o defrontar-se com a morte inexorável é dito de forma delicada, musical, o deslizar dos sonhos e da vida em trilhas e trilhos, o som do apito, o clic e o flash (lembrou-me de Clarice em Um sopro de vida: a morte é só um instante, a gente para de respirar...). Lindas imagens-máscaras de um sentimento profundo de impotência e constatação do inevitável, exposto no “mármore”. Poema que ressoa em Ausência (123), ou vice-versa, “toquei a pedra e senti / A fria dimensão do silêncio”.

2) Desistência (85) remete à velhice com uma insustentável leveza... Talvez, por isso, cause maior impacto, quando decodificamos as metáforas. Uma poética da crueldade bem inovadora, se pensarmos numa forma singular de dizer o pior: “Fechar as janelas”; uma “lógica do pior” (C. Rosset) marca as trilhas da velhice inexorável, dita de maneira metafórica e musical.

3) Muitos poemas retomam a angústia diante da efemeridade da vida, da fluidez do tempo e das coisas; a dubiedade dos desejos, travestidos em sombras, em sonhos, em azul, em espelhos cintilantes onde um poema sempre ressoa em outro. Arte final redesenha o devir delirante, o declínio, o olvido... As ilusões se desvanecem na crueza da vida, tudo se esvai de alguma forma em imagens sonoras.

4) Nas mãos (101), os labirintos do desejo: a alegria do toque de ontem , o vazio, o silêncio e a mudez de hoje, no tempo das lembranças... Quem é idoso sabe disso, é o desejo pulsando sem máscaras, refletido no espelho do tempo, crueldade da vida exposta numa sintaxe musical, suave e serpenteante.

5) Os poemas se sustentam criativamente na musicalidade das palavras, a harmonia sintática esconde um universo borbulhante de dor, desencanto e solidão. O deslumbramento dessa harmonia, porém não tem a intenção de esconder a crueldade que escapa por algum vocábulo capaz de lançar-nos na profundidade do sentido: O pulsar (55), Teatro de Sombras (53) Sensações (141) são alguns exemplos dessa técnica.

6) Teias (49) é um dos poemas em que podemos fruir as correspondências fônicas, encarnadas naquele tipo de imagens que dizem o trágico sem perder a suavidade da música : “Nos finos fios dos anseios/ Na sutileza da trama onírica/ Na poeira do meu percurso/ (...) Na invisibilidade translúcida/ que secretamente cerceia / os tépidos ou telúricos desejos”.

Os poemas de Neiva são teias que enovelam o leitor, que encantam e perturbam; só quem penetra nas suas profundezas tem a possibilidade de perceber enguias e de “entender “ as longínquas “estrelas”.

São Paulo, 14 de julho de 2014

Clara Machado"

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