Fragmentos da memória


Um rosto delicado e esmaecido que na noite fria vem ajeitar as cobertas para me aquecer melhor: “Durma bem, meu anjo”. Era minha mãe. Ela se foi.

Uma voz longínqua, mas ainda austera, que me censura por ter tirado as moedinhas do cofre que não era meu: “Nunca mais faça isso, menina! O cofre é de seu irmão”. Era meu pai. Ele se foi.

Um latido feliz, e quase inaudível, da cachorrinha que me acompanhou dos cinco aos dezoito anos e que, balançando a cauda, assim me esperava no portão de casa no horário certinho da volta do colégio. Era Bolinha. Bolinha era uma “lulu” de cor branca com algumas manchas negras e de uma meiguice infinita que me viu crescer. Ela também se foi.

Todos se foram, mas as recordações ficaram. Elas resistem.

São imagens, sons e gestos que às vezes se materializam em lembranças quase tangíveis. São fragmentos de um passado que ainda vive nos interstícios da memória e que retornam para nos lembrar talvez que "o tempo é feito de instantes", como diz o filósofo francês Bachelard, e são eles que tecem aleatoriamente nossa biografia mental.

O que as traz de volta à mente é difícil saber, adivinhar ou prever. Mas é uma sensação pouco frequente, misto de felicidade e tristeza, ou seja, pura saudade. Hoje, talvez pelo frio, a imagem de minha mãe num passado distante, buscando me aquecer, envolveu-me por alguns minutos. E faz tanto tempo! Tanto tempo! Anos mais tarde, repeti muitas vezes o gesto com meus filhos, nas noites de inverno, e me sentia feliz porque sabia que eles, bem aquecidos pelos edredons e cobertos de carinho, dormiriam tranquilos até o amanhecer. Será que eles se lembram de alguns desses momentos? Talvez sim.

Talvez, como eu, eles se recordem vagamente e até sintam, também, uma tênue saudade de um tempo que distante ficou e que retorna apenas como cenas de um filme antigo de cujo roteiro não nos lembramos mais, pois dele só restam fragmentos de imagens. Mas outras também devem povoar a mente deles e, entre elas, algumas das quais procuram esquecer, certamente, porque o mundo não é feito só de bons momentos. E por mais que tentemos protegê-los das angústias, elas de uma forma ou de outra se farão presentes em momentos que não nos é possível prever.

Neste final de semana, um de meus filhos me enviou um e-mail com fotos externas e internas do colégio em que estudou nos primeiros anos da infância. Ali estudaram ele e o irmão. Elas mostravam salas, corredores, e outros locais por onde nós, os pais, talvez nunca tenhamos passado, mas que eles conheciam palmo a palmo. E ali se divertiram, compartilharam as brincadeiras e talvez as primeiras brigas e, em especial, as primeiras inserções pelo universo das palavras e dos números. Ensinamentos esses que os tornaram, hoje, seres pensantes e adultos responsáveis.

A saudade veio paralela àquelas imagens, trazendo com elas o passado de volta. E certamente esse sentimento de um tempo feliz, ou de uma felicidade quase esquecida, não se alojou só em minha mente, mas dominou por alguns instantes a dele também e com o sabor que só as ausências marcantes dos momentos vividos são capazes de nos oferecer.

Não importa o tempo decorrido, o passado feito de fragmentos de imagens nos torna mais sensíveis e, por isso, mais humanos.

Agosto: mês de desgosto?


“Eu tenho um sonho” disse Martin Luther King, em 1963, ao povo norte-americano, referindo-se à possibilidade de em um futuro não muito distante os povos de todos os lugares não mais se dividirem por uma diferenciação na cor da pele. Frase várias vezes repetida em seu discurso, tentando com ela contagiar seu povo com a esperança em dias melhores. Sonho que, se não foi totalmente atingido, o foi em parte, sim, com o fim do Apartheid na África do Sul, na década de 80 do século passado.

“Eu tenho um sonho”, se proferida hoje, em tempos de redes sociais, certamente essa frase se tornaria viral pela nossa identificação com ela, porque todos nós temos sonhos. Sempre os tivemos. E que sonhos! Sonhos de grandeza para nosso país que encanta a todos pelas riquezas naturais, pela beleza incomum e por seu inegável potencial. Por isso, talvez, muitos acreditavam que o país caminhava na direção do progresso, tal era a propaganda enganosa veiculada pelo governo e eram poucos os que desconfiavam da malandragem que se escondia nos bastidores do Planalto. Hoje, esses poucos se multiplicaram e somente 7,7% (índice composto por analfabetos e fanáticos) da população ainda afirma crer nesses meliantes que nos assaltaram sem trégua durante doze anos.

Mas um pouco tarde talvez, pois as dificuldades se agigantaram de tal forma, com a descoberta dos cofres vazios, a diluição da economia, das empresas e dos empregos, e a consequente fuga de capital estrangeiro, que nos últimos tempos num processo evolutivo, veloz e voraz, vem consumindo as nossas reservas, as nossas esperanças e até mesmo a nossa paciência.

Ao abrirmos os jornais, ligarmos a TV ou nos conectarmos à internet, um mundo de violência contra o país e o povo nos é apresentado com a participação de políticos das mais altas esferas, políticos estes com um discurso contínuo de ética elevadíssima, envolvidos, contudo, em falcatruas impensáveis, resultando em enriquecimentos rápidos e tão altamente volumosos, a ponto de causar inveja aos mais truculentos e bilionários dirigentes das perversas ditaduras oficiais espalhadas pelo mundo.

Ditaduras estas cujos representantes são amigos, aliados e comparsas nas negociatas do ex-Presidente Lula, conforme as notícias veiculadas pelas diversas mídias desde o mês de julho e apoiadas nas investigações . Amigos também da PresidentA Dilma. Mas esta para disfarçar sua ideologia autoritária afirma a todo momento que somos uma democracia e, por isso, a palavra impeachment diante de seus ilícitos é vista por ela, por conveniência e medo, como “golpe” da oposição. O que não passa de uma falácia porque os crimes por ela cometidos (e ela bem sabe) são proibidos pela Constituição.

E a Constituição nos obriga a todos a respeitá-la. A nós, que pagamos impostos e sustentamos o país, e aos políticos que muitas vezes, como agora, a desrespeitam, desviando essas verbas em benefício próprio. Para nós, o povo, se houver deslizes, há multas pesadas, nome negativado (termo indigesto) no SPC, etc... etc..., porque estamos fora do círculo do poder. Mas ali, nos espaços internos da cúpula governamental, onde os atores aspiram ao intocável, ao sagrado, parece haver um terreno movediço em que o cenário se molda às situações, projetando novas luzes sobre a ambientação para confundir ainda mais a plateia boquiaberta com o jogo sujo que ali se faz.

E se ameaçados se sentirem, surgem, então, as revoltas e a indignação como se realmente pertencessem a uma casta classe política. Quanta hipocrisia!

Contudo, a operação Lava Jato segue impávida em seu curso. Empresários e políticos que o digam nas frias celas de Curitiba. Faltam, porém, os peixes grandes da política brasileira que certamente estão já com as barbas de molho, pois sabem eles que estão próximos de degustar as quentinhas em locais mais reservados, sem o burburinho das vaias e dos panelaços. E a população agora tem um sonho só, o maior deles: ver no mês de agosto, talvez, o causador de tudo, o palestrante mais importante, e mais bem pago do país, Lula da Silva, desmascarado, algemado e a caminho de uma cela que o espera ansiosa para o aconchegante abraço final. Não custa sonhar.