As moscas espertas

Será que o ex-presidente Lula, tão chegado a metáforas (futebolísticas e domésticas), gostou da afirmação da Ministra Carmem Lúcia ao explicitar, na exposição de seu voto, que “São raras as moscas que caem na teia de Aracne”? Ou será que ele, Lula, a mosca maior, que sempre circulou no entorno das teias, mas nunca pousou à luz do dia em nenhuma delas, se sentiu desnudo e no espelho? (Neiva Pitta Kadota npkadota@terra.com.br – São Paulo)
Publicado no “Fórum dos Leitores” do Portal Estadão.com.br, de 29/08/12.

A nostalgia dos domingos

Um amigo me enviou um e-mail neste final de tarde e se dizia melancólico. Como? pensei. Apesar deste sol que a tudo enche de luz? E dos tons alaranjados e “calientes” que parecem aquecer as nuvens e também a nós? Mas somos sensíveis. Nem sempre estamos em compasso com a beleza do entorno. Não reagir positivamente diante de um dia assim é bem mais comum do que parece. Muitos autores já manifestaram sua tristeza no decorrer desse dia da semana tão esperado. Clarice Lispector, em Água viva, afirma que “Domingo é dia de ecos – quentes, secos, e em toda parte zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pássaros e o longínquo das marteladas compassadas – de onde vêm os ecos do domingo?”
 E fiquei refletindo sobre essa melancolia que nos atinge em determinados momentos sem sequer sabermos bem por que ela ecoa dentro de nós. Mas as lembranças, essas “marteladas compassadas”, esses “ecos longínquos”, a que se refere Clarice, às vezes se apropriam de nossa mente resgatando pessoas, lugares e passagens que deixaram rastros indeléveis e, então, é impossível não ceder a essa sensação de saudade, solidão e tristeza. Mas o ato de viver nos obriga à alternância de estados de euforia e instantes nostálgicos. São os ecos do vivido que continuam em nós e de repente despontam em nosso cinematógrafo interior. São eles o acervo da nossa memória. E sem eles nada somos.
Bem diferente foi meu domingo. Atendi ao chamado do sol e da luminosidade do dia para circular pelas ruas de São Paulo, sem pressa, sem querer chegar a lugar nenhum, apenas saboreando as delícias que as cenas urbanas oferecem nos finais de semana: trânsito tranquilo nas principais vias da cidade, motoristas gentis cedendo passagem aos pedestres; pessoas de todas as faixas etárias em roupas leves e semblantes descontraídos; tênis, sandálias e bermudas compondo um gracioso festival de cores. A cidade muda porque mudamos nós e nesse sistema oscilante um é a complementação do outro.
Na obra As Cidades invisíveis, Italo Calvino, autor italiano que sabe selecionar e combinar as palavras como poucos para contar suas histórias, diz de Raíssa, uma das cidades por ele descritas, que por ela “corre um fio invisível que, por um instante, liga um ser vivo ao outro e se desfaz, depois volta a se estender entre pontos em movimento desenhando rapidamente novas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem mesmo sabe que existe.”
Não é apenas Raíssa que se transforma continuamente. Todas as cidades contam com composições que se alternam e às vezes se sobrepõem diante da mobilidade de seus personagens: ora aqui, ora ali; ora alegres, ora tristes. Também São Paulo é uma cidade mutante. Ela nos revela múltiplas faces, dependendo do dia e do horário, dependendo do bairro e também do nosso humor. À noite as ruas são belas, mas podem também conter armadilhas como assaltos, agressões, sequestros e outros inconvenientes; nela nos deparamos com incontáveis opções de lazer, estudo e trabalho, mas podemos não estar preparados para tanto; cinemas, teatros, bares e restaurantes cintilam em alguns bairros, contudo o nosso poder aquisitivo pode não estar à altura de alguns desses privilégios.
Assim, esta que é uma das maiores cidades do mundo, tem em sua essência a dualidade também existente na alma humana, essa característica de compreender o bem e o mal, de ser uma cidade similar a uma Matrioska (a boneca russa que contém dentro de si uma outra e, dentro desta, outra ainda, e mais outra e...), mas com uma diferença: não são exatamente iguais em sua aparência como as Matrioskas. Por isso, a atração que ela exerce sobre nós: por ser uma e ser várias, um caleidoscópio, uma célula viva para uns, uma utopia para outros, mas é uma cidade prenhe de devaneios e fantasias. Seja pela efervescente agitação nos dias comuns, seja pelo aspecto letárgico e sereno nos fins de semana. A metrópole assim, como um instantâneo fotográfico, nos oferece o cenário, mas quem nele atua e o altera somos nós com os nossos sonhos ou a nossa nostalgia.
Por isso talvez, neste domingo, embora meu amigo e eu tenhamos muita afinidade, ele estava melancólico sob o sol da nossa cidade, enquanto que eu mergulhada em suas teias urbanas pude nelas sentir, ainda que de forma efêmera, a vibração e a ressonância harmônica que o contexto às vezes é capaz de em nós reproduzir.        

Tempo, esse inimigo de sempre

“Quando setembro vier” é nome de um filme. Um filme para ser visto apenas como entretenimento e para quando se está cansado das mesmices que a televisão ou o cinema comercial apresentam com frequência: violência, tráfico, heróis embrutecidos e efeitos que não mais são especiais porque viraram rotina. Eu o revi nesta semana por puro acaso e o efeito foi relaxante.
É uma película já meio, ou muito antiga, dependendo da idade de cada um. É que meio imperceptível o tempo vai passando, de leve, sem quase ruído, e quando por ele damos conta, o espelho já nos revela, como em uma tela de projeção, uma “outra” pessoa nos olhando. E, perplexos, nos descobrimos já muito diferentes do que fomos.
Hoje, por exemplo, diante de um espelho me lembro de um conhecido e belo poema de Cecília Meireles que termina com este verso “_ Em que espelho ficou a minha face?”. Sim, onde se esconde, pergunto eu, aquela imagem que era o meu duplo e que agora foi substituída por uma figura estranha que mal reconheço porque o meu olhar se apoia certamente numa imagem do passado, aquela que foi congelada pelas fotos mais antigas e que me agradam, e não esta que desfigura minha face, transformando-a em uma cópia mal revelada do que fui, e que não pode ser a imagem do que sou. Mas ela é.
Isso nos faz lembrar e entender o drama existencial e estético de Oscar Wilde em sua mais famosa obra O retrato de Dorian Gray. Nesse romance, o autor registra o medo ancestral dos homens de terem de enfrentar as mudanças corpóreas e estéticas que a imagem do espelho nos revela. E hoje , mais do que nunca, se faz qualquer pacto com o diabo, como o personagem de Wilde para permanecer eternamente jovem, enquanto seu retrato envelhecia na moldura; ou com o cirurgião plástico para se poder fugir dessa sina.
Também nesse filme os atores ainda eram jovens e belíssimos. Um par irresistível de felinos: Rock Hudson e Sophia Loren. Ele morreu na década de 80, soropositivo, e devido a sua doença sofreu uma grande transformação visual. Ela, uma bela atriz italiana que primeiro escondia as rugas atrás de seus óculos escuros e, depois, passou a fugir dos fotógrafos, o que é comum entre os famosos quando as marcas do tempo se mostram irredutíveis a cremes e bisturis.
E, dentre os jovens, quem hoje conhece Rock Hudson e Gina Lolobrigida? Só mesmo os com bem mais de 40 ou os apaixonados por cinema. Estes sim, independentemente da idade, sabem tudo a respeito da denominada “sétima arte”: do diretor ao roteirista, à trilha sonora e aos atores. Discutem a sua performance, o enquadramento, os planos, enfim todo o trabalho de câmera e tudo mais que um futuro cineasta precisa conhecer ou o amante das “telonas” busca curioso descobrir.
Não se pode esquecer que é uma arte engenhosa o cinema e, por isso, para poucos. Mas essa arte, quando bem conduzida, nos coloca diante dos problemas e das angústias dos homens, levando-nos a conhecer melhor a nossa essência pela imediata identificação com o outro, o que pode produzir em nós um efeito de relaxamento e de aceitação até das mudanças que nos esperam num futuro próximo, ou mais distante, porque queiramos ou não “assim caminha a humanidade”. Aliás, este é também outro título de filme antigo e também com Rock Hudson, um galã cujo rosto perfeito embelezou as telas e enfeitiçou todos os seus fãs, mas não resistiu à passagem perversa do tempo e às alterações que esse trajeto provoca.