As lições da mídia

De pessoas experientes, sempre se ouviu que a fase de aquisição do saber é contínua, é infinita, não tem data de término, pois o conhecimento tem de ser constantemente atualizado e, às vezes, até renovado porque o mundo, como nós, é também mutante. Seria essa, então, a causa de tantas opções de cursos e atividades hoje, em todas as áreas do saber, e também do sentir e do fazer? Talvez sim, mas é bom estar atento aos estímulos que recebemos porque nem tudo que é colocado pela mídia, para atender ao mercado, é tão benéfico assim para nós.
Com a evolução do marketing recebemos, por várias mídias, propostas como cursos de especializações, de MBAs e outros, que poderão impulsionar carreiras; ou viagens de intercâmbio para aperfeiçoar o conhecimento em áreas como artes, arquitetura, filosofia e tantas outras; ou cursos que oferecem técnicas em áreas específicas, como cinema, teatro, mas nem sempre as escolas que os oferecem detêm a credibilidade necessária para ministrá-los. E assim perdemos tempo e dinheiro, e só ganhamos frustrações.
Por outro lado, temos ofertas de aulas de culinária, as mais exóticas, porque está na moda agora homens e mulheres irem para a cozinha e darem uma de “chef” apenas para impressionar os amigos; cursos de maquiagem para criar uma nova imagem de si, porque o importante é parecer (ou aparecer) e não mais ser; o assédio das academias para as aulas que visam ao aperfeiçoamento do corpo, e outros apelos como o aprendizado e o aprimoramento de técnicas para aumentar a sedução feminina no relacionamento amoroso, e também o prazer nas relações sexuais, o que vem tornando nossas adolescentes grandes especialistas no assunto.
Nestas técnicas, as revistas denominadas femininas são as mais especializadas. Elas que no passado ensinavam a bordar e fazer tricô, o que colocava a mulher num detestável plano mental inferior ao do homem, hoje, apesar do aparente avanço pela ousadia em tocar na questão do corpo e do prazer, parecem querer mantê-la no mesmo patamar ao dar ênfase apenas ao aperfeiçoamento destas “habilidades”, em detrimento da aquisição de competências mais significativas para a superação do seu status de “inferioridade cognitiva” (assim classificadas em um passado jurássico) em relação ao sexo oposto. E essa diferenciação de QI pode, às vezes, começar em casa mesmo com uma educação errônea, pois para muitos pais: a menina tem de ser bonitinha, e basta; o menino, não, ele tem de ser inteligente. E depois, por incrível que pareça, reclamam que a garota não sai da frente do espelho.
Isso não quer dizer que a beleza não deva ser cultivada, aprimorada, admirada. Não! O belo existe, está no mundo: nas artes, na natureza, em toda parte, e é o que nos sensibiliza e oferece motivação para participar desse processo instigante e paradoxal que é o viver. Mas até para se apreciar em profundidade essa beleza múltipla, e dispersa, é preciso conhecimento. Umberto Eco, conhecido escritor italiano, trata dessas questões em duas de suas obras: História da beleza e História da feiúra. Eco foi alguém que se debruçou sobre os livros para nos oferecer uma análise do que se constitui a beleza e seu oposto. Ele não se satisfez apenas em observar lindas mulheres, e certamente desejá-las; em apreciar obras de arte nos museus e fora deles, mas buscou entender o porquê de formas tão perfeitas, tão divinas, capazes de nos levar ao êxtase diante delas.
O que parece faltar a algumas mídias hoje, e em especial a esse tipo de mídia: as revistas femininas, é um equilíbrio entre as matérias por elas veiculadas. Falta inserir em suas páginas assuntos mais relevantes como literatura e cinema, música de qualidade e teatro, por meio de curtos e leves ensaios e resenhas críticas sem hermetismos; de entrevistas, mas não apenas dos famosos, dos globais, das “panicats”, e sim de intelectuais que gradualmente despertem o gosto para o saber e também para o belo em um sentido mais amplo e possam, dessa forma, contribuir para uma diminuição da distância abissal que ultimamente se vem observando entre mente e corpo, buscando o espelhamento entre ambos, isto é, uma mente privilegiada, porque culta, em um corpo divino, porque escultural, perfeito.
Chegaremos lá? Não sabemos, mas não custa sonhar e até arriscar sugestões, pois sabemos que a mídia move o mundo hoje e o que ela trouxer em suas páginas, seja imagem seja texto, se transformará, sem dúvida, em um modelo para o qual não faltarão seguidores.



À espera de Ulisses



A leitura dos clássicos é sempre atual, daí a sua classificação. Obras como a Odisseia, de Homero, não caem no esquecimento porque estão fortemente inseridas na memória coletiva, fazem parte de todo um imaginário que nos serviu de modelo na esfera dos valores humanos. A heroicidade do personagem Ulisses, a fidelidade de Penélope, a servidão incondicional das criadas nos comovem e fortalecem os princípios da ética e da moral.

Contudo, há dúvidas quanto à existência do tão famoso autor grego Homero, a quem também cabe a autoria da não menos clássica obra a Ilíada. Obra essa que inicia a mais conhecida narrativa épica ocidental: a Guerra de Troia, travada pelo rapto da bela Helena, esposa do rei Menelau, de Esparta. Não temos dados científicos comprobatórios de sua história de vida. Conhecemos, sim, a saga de Ulisses, seu personagem e rei de Ítaca, que em sua viagem pelos mares bravios, enfrentou incontáveis perigos e só retornou à sua cidade, para reconquistá-la, dez anos após sua partida. Chegou disfarçado de mendigo e, apesar da farsa por ele encenada para driblar os pretendentes à mão de sua esposa Penélope que se amontoavam pelo palácio, no aguardo da escolha da desejada musa, só foi reconhecido pela escrava ao lavar os seus empoeirados pés pelo longo trajeto de volta, ao deparar-se com a cicatriz em sua perna.

Mergulhamos nessas envolventes narrativas épicas desde muito cedo não só pela literatura, mas hoje também pelo cinema e outras mídias, mas desde a antiguidade se procura, sem sucesso, uma biografia de Homero. Isso, contudo, é uma questão menor e não é única, pois outros relatos fabulosos também prescindem de uma autoria confirmada e vão se perpetuando pelos séculos e até milênios ad infinitum. O que nos interessa mesmo é o teor dessas narrativas míticas que surgiram no mundo da oralidade e passam de geração a geração porque aceitas coletivamente, sem questionamentos de autoria ou veracidade. É que elas estão intrinsecamente relacionadas à nossa vida e à nossa história, ao nosso desejo de justiça, de vencer obstáculos e de chegar à vitória, independentemente de sua dimensão e sua repercussão.

Dentro de nós existe sempre o desejo de fazer a luta valer a pena, seja ela em que direção for: seja na superação de um obstáculo, na busca de um emprego, na realização de um trabalho qualquer. Parece ser isso também o que dá sentido à vida. Daí a nossa frustração diante dos insucessos. Daí o nosso medo também de não saber responder aos enigmas que nos propõem as esfinges do mundo contemporâneo. Esfinges no plural, sim, porque elas se globalizaram também. Estão elas em toda parte, materializadas na estrutura de nossa sociedade e nos devorarão sem piedade se não soubermos decifrar em tempo hábil as mensagens sub-reptícias que permeiam seu discurso.

Os meios de comunicação se multiplicaram, mas alguns se babelizaram, outros se subordinaram a governos inescrupulosos, e nos sentimos à deriva. Quem está do nosso lado e quem está contra nós? Quem busca abrir nossos olhos e quem deseja ofuscar nossa visão? Não sabemos mais. Mas quem nos condena a impostos cada vez mais altos, sem retorno, e amplia o Estado com um contingente cada vez maior de “inexplicáveis assessores” pensa ou não no nosso futuro? E quem oferece financiamentos alongadíssimos a juros impagáveis porque altíssimos para a aquisição da casa própria quer o nosso bem ou o nosso voto? Para muitos, essas atitudes são um enigma de difícil decodificação; para outros, nem tanto.

A razão é que muitos se vêem na narrativa fabulosa da Odisseia, no barco de Ulisses, diante do canto da feiticeira Circe e sabem que se ouvirem o seu canto, se se deixarem seduzir por ele, serão por ela dizimados e não mais retornarão à Ítaca, pois serão desumanizados, transformados em porcos como na história mítica. Por isso, é preciso fazer como Ulisses que procurou tapar os ouvidos de seus argonautas com cera para não se deixarem enfeitiçar por Circe e, assim, tocar o barco para a frente. E, ainda, seguindo o exemplo do herói grego, amarrar-se fortemente ao barco para apesar da voz maviosa que vem da ilha da fantasia, não se deixar levar pelo seu canto enganador e através de estratégias dignas de uma verdadeira aventura homérica, ter como objetivo calar esse som e resgatar essa ilha. Conseguiremos isso? O tempo dirá.


Texto publicado em 2007, no Jornal O avaiense. E ele continua atual em 2012.