O que é ser elite?



O significado das palavras pode ser alterado no decorrer do tempo. A língua é dinâmica, dizem os linguistas. Concordo. Uma palavra sofre alterações de acordo com a ideologia vigente. No passado, de todos aqueles que estabeleciam um relacionamento afetivo fora do casamento, dizia-se que tinham amantes. Hoje, a palavra amante foi substituída por namorada/namorado. Muito mais amena, anulando quase a carga negativa que a outra continha, sem que alteração nenhuma tenha sofrido o relacionamento extraconjugal quanto à sua ilegalidade.
Hoje, a metamorfose das palavras encontra-se, mais do que nunca, a serviço do poder. Por exemplo, pela ótica da política atual em nosso país, as pessoas do governo que desviam verbas públicas para a sua conta bancária, não são corruptas (termo pesado), elas apenas praticam “malfeitos”, segundo a presidente. Se forem do seu partido, claro! Os demais continuam corruptos e cometem os graves crimes chamados, pelo PT de outrora, “crimes de colarinho branco”. Ou seja, os ricos, os empresários, os banqueiros e os políticos da oposição. Estes últimos, por serem em sua maioria oriundos de famílias com melhor poder aquisitivo, são classificados como elite, com uma conotação muito negativa. Como se aqueles que nasceram em famílias estruturadas, cujos pais conseguiram oferecer uma boa educação a seus filhos, e muitas vezes à custa de grandes esforços, privando-se mesmo de outros sonhos para que seus descendentes pudessem “ser alguém na vida”, são vistos ambos, atualmente, como indivíduos nefastos à sociedade, “personas non gratas” ao sistema porque “não são trabalhadores”. São eles rotulados de “exploradores” das classes menos privilegiadas. Ainda que sejam professores e que trabalham muito para educar, indiferentemente, os filhos dos ricos e dos pobres.
O que me leva, nesta crônica, a criticar a postura ensaiada do poder vigente para cristalizar essas frases e essas ideias na mente dos menos esclarecidos, fazendo assim com que eles (pura massa de manobra de seus líderes) se revoltem contra os que parecem ter mais do que eles, foi um incidente nesta semana, na Avenida Paulista, o orgulho dos paulistanos. Sim, orgulho, mas que vem se transformando cada vez mais em um inferno por aqueles que querem macular a imagem de São Paulo, ou melhor, da administração do Estado e da Prefeitura, por motivos já conhecidos: apoderar-se do último reduto de resistência ao PT para este se tornar um poder hegemônico, ou seja, totalitário no país.
Vamos aos fatos. Na manhã de quinta-feira passada, a segunda do mês, tudo me parecia tranquilo quando saí para um compromisso de trabalho e, como preciso fazer caminhadas, resolvi ir a pé. Na volta, fui surpreendida por uma multidão, um aglomerado compacto, que tomava toda a calçada e impedia os transeuntes de ir em frente. Educadamente comecei a pedir licença, mas pela fúria enlouquecida e pelos “gritos de guerra” dos sindicalistas contra os patrões e o governo paulista eu não era ouvida. Insisti várias vezes, e sempre de forma educada, até que um deles se virou e com olhar de desdém gritou: “Essa elite...!”.
Depois de todo o transtorno, vim para casa pensando por que fui classificada de forma pejorativa como “elite”? Eu não me vestia de forma sofisticada, apenas discreta; não usava joias nem bijouterias; estava a pé, como eles, e realizando o meu trabalho. Apenas falava em voz baixa, solícita, e não aos gritos, como toda pessoa da minha faixa etária e bem educada. Se isso significa ser elite, eu sou, e agradeço muito a meus pais por essa dádiva. Se ser elite é ter estudado com afinco e dedicação e vencido as barreiras financeiras com que a vida de repente nos surpreende, eu sou elite e me orgulho disso. Se ser elite é ter recebido Bolsas de Estudo da CAPES e do CNPQ para os cursos de Mestrado e Doutorado, pelos projetos com qualidade que apresentei, desenvolvi e publiquei, para que outros possam usufruir dessas pesquisas, e não por um atestado de pobreza apenas como se vê hoje, eu me sinto muito envaidecida com esse novo título e vou usá-lo agora com todo o respeito que ele merece.
Descobri, então, que pertenço a uma elite intelectual. Eu sou elite! Que honra!
Obrigada sindicalistas!

Caminhos

Caminhos inversos
transversos
nem sempre per-versos
Caminhos
incertos
singulares
barthesianos

O olhar e o traço de Kurosawa

O tempo é a duração relativa das coisas, segundo o Dicionário Aurélio. O tempo nos dá a sensação do instante em que vivemos e, também, de um período anterior a este e ainda de outro posterior a ele; o que nos permite diferenciar o hoje, o ontem e o amanhã. Tudo e todos têm um tempo. As pessoas costumam dizer “no meu tempo...” para relatar a alguém mais jovem o que fizera em um outro período da vida. Segundo o filósofo Bachelar, o tempo é a soma dos instantes. Por isso, os tempos são diferentes para cada um de nós. E a sensação que temos é de que o tempo é mutante, porque às vezes parece que passa rápido demais e às vezes que se alonga infinitamente. Pura impressão nossa. Ele apenas dimensiona a duração de um determinado acontecimento ou fenômeno. Nada mais. Contudo, entre um tempo e outro quantas coisas acontecem!
O tempo do cineasta Akira Kurosawa foi comemorado em São Paulo, em 2010,  pelo esforço conjunto do Instituto Tomie Ohtake e da Mostra Internacional de Cinema que nos revelaram uma face pouco conhecida de sua arte: o desenho, o traço. E que traço! Não fosse ele o grande diretor de filmes imperdíveis como “Kagemusha”, “Ran” e o sedutor “Sonhos”, entre inúmeros outros, Kurosawa poderia hoje estar ocupando as melhores galerias de arte de todo o mundo, como artista plástico, com seus desenhos e aquarelas que só agora começaram a ser vistos pelos brasileiros que tanto admiram a sua linguagem fílmica. São originais para storyboards dos filmes citados e até de alguns que não chegaram a ser transformados em películas. Por falta de patrocínio talvez. É que a arte nem sempre é vista com a seriedade e a sensibilidade que ela merece. É assim, muitas vezes, não só no Ocidente mas também no Oriente.
Mas o que mais nos surpreendeu nessa exposição foram as minúcias que o olhar do artista capta e registra em seus desenhos como a riqueza e a variedade dos motivos florais das vestimentas em cores múltiplas, os detalhes dos cenários internos ou externos, os minúsculos traços que compõem o exército infinito dos soldados que em uma massa compacta irão enfrentar os inimigos. É a movimentação e a velocidade que seus desenhos, em rápidas e precisas pinceladas, oferecem à criação de cenas que caracterizarão a heroicidade de seus personagens. Nada escapa à imaginação e ao planejamento das cenas, à visualização prévia do que se teria depois nas telas de exibição do Japão e, principalmente, fora dele.
A exposição homenageou o centenário de nascimento de Kurosawa, um artista completo em seu fazer, que optou pela carreira cinematográfica e utilizou o seu tempo, a sua permanência entre nós, para a produção de uma arte que marcou a época áurea da filmografia japonesa, período compreendido entre as décadas de 40 e 80 do século passado, e que nem o tempo apagará de nossa memória. É que o sonho de um artista quando expresso com “engenho e arte” acaba por habitar a mente coletiva, contaminando a todos com as imagens do seu mundo interior e as sutilezas de sua sensibilidade.

Obs.: A exposição denominada “Kurosawa: criando imagens para o cinema” apresentou-se no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, no final de 2010. E este texto foi originalmente escrito. à época, para o Jornal Condomínos S. A.
  

Vínculos invisíveis

Gotas de cristal alinhadas
Suspensas
Em círculos sonâmbulos
Ao sabor dos sonhos
De ontem
De hoje
De sempre.
No mapa das horas se alongam
Se  estilhaçam
Se  refazem
E brilham ocultas
Entre as volutas
Da trama tecida
De um outro amanhecer.


A outra face de Chico Buarque

De longa data a figura do cantor e compositor, hoje escritor também, Chico Buarque, ocupa um espaço carinhoso na memória musical de muitos que acompanharam a sua incomum trajetória artística, desde os tempos de sua juventude. Chico encantou e encanta a muitos, ainda, e é um sucesso em shows e gravações com aquele jeitinho maroto de garoto grisalho e olhos da cor do mar, que canta baixinho e suave como que para não incomodar ninguém.
Sempre ouvi seus versos com deleite e admiração. Que suavidade em suas melodias! Que delicadeza no canto das misérias humanas! E que sutileza para revelar a alma feminina! Um artista da palavra e do ritmo harmônico cuja voz permanecia em nossos ouvidos muito tempo depois de ouvir suas músicas. Chico, Caetano e Milton Nascimento, somados a Gal, Nara Leão e Bethânia, formavam para mim, no passado, o que de melhor tínhamos em reserva musical da MPB.
Gostava também da sua irreverência e desacato ao “politicamente correto” da época ao criar a sua “Geni”. Lembro-me que alguns pais proibiam os filhos de ouvir o “Joga pedra na Geni/ Joga b...na Geni”. Repetir o refrão, então, nem pensar. Mas Chico sabia muito bem o que fazia. Era uma forma de usar a linguagem sem as garras do poder, da ideologia dominante, que em regimes autoritários determina o que devemos dizer e o que devemos pensar, mas a maioria da população desconhecia totalmente essas formas de dominação e, por isso, inconscientemente colaborava com o status quo.
Famosa também ficou a letra de “Cálice”, cujos versos denunciavam, a quem estivesse atento, a censura reinante no país: “Pai, afasta de mim este cálice” e ainda “De vinho tinto de sangue”. Foi a canção-símbolo que melhor explicitou a existência de um sistema autoritário ditando as normas no país.
Entretanto, esse mesmo Chico Buarque que, no passado, tanto se indignou com os dirigentes da nação no regime militar porque impunham leis severas de censura para preservar a ordem por eles estabelecida em 64, hoje não se sente ofendido com a censura ao maior e melhor jornal do Estado brasileiro, o Jornal O Estado de S. Paulo, por noticiar o caso de corrupção do filho do Senador José Sarney. Há mais de 900 dias, este jornal está proibido de publicar qualquer notícia sobre a Operação Boi Barrica, da Polícia Federal, referente ao caso de Fernando Sarney. E estamos, segundo o governo vigente, em uma Democracia (“plena, geral e irrestrita”, como gritavam à época para incitar o ânimo dos jovens, os que hoje dão as cartas no governo porque são os que estão no poder).
E a tal Democracia? O que houve com ela? Fragilizou-se? Hoje, jornalistas são processados e ameaçados, alguns vão para outros países até, como é o caso de Diogo Mainardi, do programa Manhatan Connection, ou se calam por precaução, e nem uma canção brotou do espírito democrático de Chico Buarque! Estranho, não? Será que a sua ideologia de esquerda o impede de ver todas as mazelas que constatamos dia a dia no governo atual, ou será que ele descobriu que estar ao lado do poder é muito mais cômodo e vantajoso do que compor musiquinhas que comprometam a sua tranquilidade, o seu sucesso e o de seus familiares?
Ora, ora! A irmã de Chico, Ana de Holanda, a ilustre desconhecida, não chegou até ao cargo de Ministra? É a nossa atual Ministra da Cultura. Só cometeu equívocos até agora, mas continua lá, como tantos outros sem competência. E nem Chico Buarque, nem ninguém mais, joga nada na “Geni”. Eh, Chico! Quem te viu e quem te vê! Não dá mais pra reconhecer.